Número da Sorte

Fabricio Altran
Coletivo Metanoia
Published in
3 min readApr 8, 2021
Photo by dylan nolte on Unsplash
  • Bingo!

Marcou o último número em sua cartela só depois de gritar bingo. A sensação era a mesma de ganhar um brinquedo novo.

Aquele era seu primeiro contato com a sorte, na festa junina da escola. A mãe, orgulhosa, foi junto com o filho buscar o carrinho de plástico que servia de prenda. O objeto virou um troféu, e o número, uma fixação.

Quando completou a maioridade, aventurou-se pela primeira vez no bingo. Fez questão de escolher uma cartela com o seu número, tão perfeitamente colocado entre o quinze e do vinte.

Por um instante, chegou a duvidar que poderia ser sorteado com aqueles números. A cartela que escolheu tinha os números dezesseis, dezessete, dezenove e vinte. Era uma sequência muito próxima, as chances não eram nada favoráveis. Porém…

  • Bingo!

Lá estava ele. O número da sorte não o decepcionou novamente. Saiu do local de carro novo, direto para a lotérica, pronto para a próxima aposta: a Mega da Virada.

Fez sua aposta justa, e reforçou seu número com a caneta, a ponto de rasgar o papel do jogo na empolgação, e tendo que refazer em uma nova cartela. Guardou o bilhete embaixo de seu carrinho de plástico, dentro do porta-luvas do carro novo. Afinal, sorte chama sorte.

Comemorou a passagem do ano milionário. Não contou para ninguém além de sua mãe. Manteve os estudos por mais um ano para não levantar suspeita e trancou a faculdade. Com o dinheiro que tinha, rodou o mundo e conheceu cada canto do planeta. Gastou trinta e quatro anos de sua vida sem precisar trabalhar, vivendo da renda de sua aposta, quando decidiu retornar ao Brasil. Era hora de devolver um pouco do que havia ganhado.

Inteirou-se do que estava acontecendo, e sabia que o país precisava de mudanças urgentes. Não tardou e logo viu seu número da sorte na campanha eleitoral. Simpatizou de cara com os valores do homem que falava sem medo na televisão, ainda que sozinho, pois diversos infortúnios o impediram de ir aos debates. Coitado!

Seu número não o decepcionaria. Apertou a dezena na urna, sem medo. Sabia que estava compartilhando um pouco de sua sorte com o país.

Não se espantou com a vitória de seu candidato. A era de ouro estava chegando.

Passou o primeiro ano tranquilo, fiel à sua sorte. Não precisava usar máscara, afinal não era a teoria maluca de um pessoal da oposição que o faria duvidar do seu modelo de governante.

Ignorou as regras de segurança até que pegou uma gripe. Não uma gripe qualquer, no entanto, mas sim um novo vírus. Um vírus que o debilitou a ponto de precisar de um leito e entubação em um hospital. Passou mais de trinta e quatro dias por lá, e quando saiu, não reconhecia mais o lugar onde estava.

Com as fronteiras dos países fechadas, não tinha para onde correr. Viu o valor de seu dinheiro ser reduzido a menos da metade, e a fortuna se esvaindo. O presidente, portador da legenda de seu número da sorte, dizia que aquilo tudo era temporário, assim como seus ministros, que caiam a torto e a direita.

Rezava todos os dias pela vacina. Se estivesse nos EUA ou qualquer país da Europa, muito provavelmente já estaria protegido, porém era tarde e as fronteiras já haviam se fechado. Mas aqui, seu presidente, aquele que ajudou a colocar no poder compartilhando seu número da sorte, insistia que poderia transformá-lo em jacaré.

Infelizmente, não foi num jacaré que ele se transformou. Mas sim, em estatística. Com a recontaminação, dessa vez não resistiu e virou apenas mais um número, a décima sétima morte daquela dia.

--

--