Nina

Rene Spoladore
Coletivo Metanoia
Published in
5 min readDec 8, 2020
Foto de Leyre

Era estranho entrar naquele apartamento. A sensação era de estar em suspensão, dentro de uma realidade distorcida. A luz azul fraca dos monitores revelava pouco do que havia ali. Uma sala comprida com poucos móveis e uma cama em um canto. Ao fundo viu uma silhueta, alguém recostado em uma cadeira, parecia estar dormindo.

Ela se aproximou lentamente, desviando de cabos e fios que serpenteavam pelo chão. Parou de repente, em alerta. Uma luz forte veio através da enorme janela. Levou a mão até a empunhadura da sua Colt AMT como se uma força magnética a tivesse puxado para lá. Os olhos arregalados. A atenção em tudo ao seu redor. Respirou aliviada quando notou que era apenas um drone publicitário exibindo em sua imagem holográfica uma promoção de um hambúrguer feito com 17% de carne de verdade e o resto era qualquer lixo sintético.

Nina andou até a janela e apoiou as mão no vidro gelado. Do lado de fora viu a cidade, engolida pela ganância das megacorporações e que agora vivia em uma escuridão. Era triste ser esquecido e deixado para trás para morrer, mas essa era a regra do jogo. Ou você tem dinheiro ou você mata ou rouba para conseguir sua cota.

Nina era uma ronin, uma freelancer. Se fosse preciso matar ela mataria.

A pessoa ainda estava sentada na mesma posição. Cabeça apoiada no encosto. Ela se aproximou e não se sentiu impressionada pelo que encontrou naquele apartamento. Então esse era o tal fantasma que ninguém conseguia encontrar na rede? Bom, ela conseguiu. Ele respirava lentamente e tinha os olhos fechados e se movendo rápido, como em um estágio de REM do sono. Ele cheirava a suor e cigarro barato. A barba por fazer e os cabelos desgrenhados lhe davam uma aparência desgastada. Há quanto tempo ele estava conectado? Nina não sabia dizer.

Um hacker que nunca fora rastreado. Sempre sumia sem deixar vestígios e levava as informações que queria como se invadir uma rede de segurança fosse tão simples quanto abrir uma porta e atravessá-la. Ela olhou a projeção em um monitor velho. A imagem era ruim e com chiado, mas ela sabia o que era. Ela o viu operando o vírus que quebrava aos poucos o firewall que protegia as informações da Corporação Yoshimitsu. Nina se afastou da mesa e então percebeu o braço robótico do rapaz apoiado no encosto da cadeira. Acariciou o metal gelado e sorriu um sorriso amargo. Sentia pena do hacker, iria matá-lo e ele nem ao menos saberia o que aconteceu. Em um segundo estava conectado e no outro seus miolos estariam espalhados pela mesa.

Nina deu de ombros e sacou a pistola. Odiava fazer seu trabalho dessa forma, mas ao menos seria rápido e não haveria luta e receberia sua grana mais rápido.

Nina deu dois passos para trás e fez mira. Hesitou por um segundo. Esse tempo foi suficiente para ela pensar em como havia sido fácil encontrar o hacker fantasma. Ele queria que ela o encontrasse ou ele se expôs acidentalmente? A segunda opção não parecia ser verdadeira. A Colt AMT tremia em sua mão. Nina nunca se sentiu tão insegura e com medo de fazer seu trabalho. Por que diabos alguém entregaria sua posição para uma assassina? Isso seria suicídio.

- Vamos samurai, atira — o rapaz disse.

Sua mão pressionou a empunhadura com força e sua respiração ficou mais intensa.

- Não sou uma samurai.

- É uma ronin?

Ela assentiu e deu mais um passo para trás.

As luzes verdes da tiara eletrônica que o rapaz usava se apagaram, ele a removeu e colocou na mesa com delicadeza. O fantasma esticou os braços e se alongou, suas costas e ombros estalaram ruidosamente então, com calma, ele se levantou e andou até uma pequena geladeira de onde tirou duas garrafas de cerveja. Ele as abriu e entregou uma para Nina. Assim que ela a pegou o hacker bateu de leve com sua garrafa na dela criando um tilintar sombrio que preencheu o apartamento com aquele som estridente. Nina sentiu um arrepio subindo em sua nuca.

- Eu estava ansioso pela sua chegada.

- Como…?

- Eu te dei as pistas e você seguiu todas elas direitinho.

- Por que…?

Ele se aproximou e ela percebeu os olhos verdes bonitos, mas cansados. Seu rosto tinha uma expressão de esgotamento completo e melancolia, mas havia algo mais ali. Não no rosto, mas nos olhos. Ele a olhava com ternura. O fantasma tirou do bolso uma pequena moeda de 5 Créditos das Nações, era antiga, provavelmente do ano de 2092. Ela estava danificada, havia uma marca de bala quase que em seu centro. O rapaz tocou com o dedo um pouco acima do seio de Nina.

- Te trouxe aqui, porque queria te ver de novo.

Nina pegou a moeda e olhou com atenção. A peça de metal havia sido atingida por um projétil de 9mm. Ela lembrava-se de ter sido salva por uma moeda dessas, que carregava em um cordão em volta do pescoço, mas não lembrava-se do hacker.

- Achamos que você estava morta, por isso te deixamos.

- Eu não me lembro de você — Nina estava assustada.

- Nós estávamos escoltando um figurão, mas as coisas saíram do controle e uma coisa levou a outra, então teve o tiroteio… — o hacker deixou a frase morrer.

- Eu me lembro do tiroteiro. De ter sido salva pela equipe de resgate que limpou a área depois do tiroteio, mas não me lembro de você.

- Você não se lembra do seu irmão? — disse em meio a uma risada carinhosa.

O rapaz se aproximou e a abraçou calorosamente. Nina sabia que tinha um irmão por aí, mas esse cara não parecia com ele. Ela o afastou e fixou seus olhos em cada detalhe de seu rosto. Os olhos verdes eram parecidos com os dela. Nina sorriu. Os dois se apertaram em um abraço fraternal e ela lhe sussurrou no ouvido.

Nina saiu do apartamento sem pressa. Tocou com o dedo sua têmpora, acionando seu comunicador subcutâneo.

- Está feito, estou te mandando as imagens.

- Ótimo! O dinheiro estará na sua conta até amanhã— disse a voz do outro lado da conexão.

Ela saiu do prédio enquanto limpava o sangue da sua jaqueta. Olhou para a moeda de forma indiferente e a guardou no bolso, não remoeu o assunto sobre o hacker ser ou não seu irmão. No fim tudo no mundo era apenas mais um trabalho. Olhou para a cápsula do projétil que disparou, sorriu para ela e guardou-a junto com a moeda.

Nina subiu em sua moto e antes que pudesse sair, recebeu uma ligação. Um circulo de luz branca ascendia e apagava suavemente na lateral de sua cabeça. Mais uma vez pressionou a têmpora e ouviu o que a pessoa do outro lado tinha a lhe dizer.

- Chego aí em meia hora.

A ronin deu a partida na motocicleta e motor rugiu como um leão faminto e cortou pela cidade, se transformando em um borrão luminoso, atravessando a noite que parecia durar para sempre, afinal sempre havia outro trabalho virando a esquina.

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