O carrossel

Rene Spoladore
Coletivo Metanoia
Published in
8 min readMar 9, 2021
Foto por Pryscila Colasso

- Droga — disse Angela, esfregando a testa.

Ela olhou para o lado e viu Sophia com as mãos nas têmporas. Sentiu-se aliviada ao vê-la bem.

Tentou lembrar-se do que havia acontecido. Tudo foi muito rápido. A chuva forte, o outro carro vindo na direção oposta, o grito dos pneus freando e o som dos vidros se estraçalhando.

A porta do carro estava emperrada, ela empurrou com força e quando viu que não abriria tão facilmente, investiu com o ombro. Depois de três pancadas fortes a porta se escancarou, derrubando pedacinhos do vidro da janela no asfalto.

Angela desceu do carro cambaleando. Sua visão estava embaçada, as coisas pareciam não ser reais, como se uma névoa mágica cobrisse parte do que ela enxergava. Com passos errantes ela foi até o outro veículo. Um homem estava sentado no chão, encostado no pneu, ele choramingava algo sobre não ter sinal em seu celular. A porta do passageiro estava aberta e no banco estava uma mulher sentada com as pernas para fora, ela observava uma garotinha colhendo pedrinhas no acostamento.

- Ei, moça — disse a garotinha — Olha o que eu achei!

Angela a viu estender a mão segurando uma pedra esverdeada e lisa, era bonita. Ela respondeu com um sorriso e então a garotinha guardou-a no bolso e continuou a procurar por mais pedras.

- Está tudo bem com você? — Angela abaixou-se e tocou o ombro do homem, mas ele não a respondeu, apenas continuou com aquele lamento desnecessário.

- Porcaria de companhia telefônica, nunca tenho sinal quando preciso — o homem falava para ninguém — Como o guincho vai chegar até aqui, vamos perder a festa e meu irmão vai ficar decepcionado.

Sophia se aproximou e quando viu o homem e sua família fez uma careta de desaprovação. Ela olhou ao redor e sentiu-se como se estivesse sozinha, uma brisa gelada vinha da floresta que flanqueava a estrada. Deixou aquela sensação passar pelo seu corpo e respirou o ar perfumado de madeira e vegetação, aquilo era muito bom.

- Eu vou até a cidade a pé — disse Angela — Não tô conseguindo sinal com meu celular.

- O meu quebrou — Sophia mostrou o aparelho, ele tinha a tela preta e não ligava.

A caminhada parecia tranquila, até que não pareceu mais tranquila. Há quanto tempo estavam andando? Uma hora? Duas? O tempo não parecia fluir naquela paisagem repetitiva. A estrada parecia infinita, era como se não levasse a lugar algum. Angela tinha certeza de que, se dessem meia volta, não encontraria mais os carros acidentados. Para piorar Sophia não conseguia ficar quieta e tudo o que queria era chegar a cidade e encontrar alguma mecânica que pudesse guinchar o carro. Ao menos não estava se sentindo cansada nem com fome ou sede.

- Por que tu decidiu me seguir? — esbravejou Angela, parando no meio da estrada e se virando para olhar Sofia nos olhos.

Aquele olhar severo parecia algo ensaiado como se Angela estivesse esperando o momento certo para repreendê-la. Sofia não deu tanta importância para aquilo, estava apenas tentando animá-la, mas não estava funcionando, por mais que iniciasse uma conversa Angela não participava ou a encerrava com uma única palavra como “é” ou “hmm”. A caminhada entediante era apenas Sofia falando e falando. Falou sozinha sobre a praia, sobre seus pais, sobre Angela estar sendo chata. Tentou até falar da paisagem, falou sobre o asfalto liso e sobre a floresta. Quando não havia mais assunto, cantou para espantar o tédio e quando se deu conta havia cantado todas as canções do álbum The Wall. Sophia sabia que Angela gostava daquelas músicas.

- Por quê não ficou lá no carro, ao invés de ficar me irritando?

- Porque eu queria ficar com você.

Angela bufou e voltou a andar. Sophia, por sua vez, ficou alguns segundos parada, apenas observando-a caminhar, suas curvas desenhadas dentro daquele jeans apertado, seus cabelos cacheados que se moviam como molas negras e o perfume doce que deixava enquanto andava. Quando saiu do devaneio, apressou seus passos para acompanhar sua namorada.

- Olha ali na frente — Angela apontava animada para o portal da cidade, quase que escondido pela névoa que ficou para trás quando a chuva há muito havia passado.

Logo na entrada havia algumas casinhas de madeira e lojas, nada de grandes franquias poluindo a beleza de uma cidade litorânea pequena, somente o bom e velho comércio local. O destaque ficava para o parque de diversões no pier com sua roda gigante e diversas barracas espalhadas ao redor de um belo carrossel. O parque em si não era grande coisa para os turistas da cidade grande, mas era charmoso. Se assemelhava a um acessório indispensável que completava a beleza simples daquela cidadezinha.

Angela, com um olhar austero, não prestou atenção em nada daquilo. Virava o rosto de um lado para o outro, como um galo de briga. Olhou atentamente as placas dos comércios em busca de qualquer coisa que se assemelhasse a uma mecânica.

Sophia, por sua vez, observou a cidade com paixão, era o tipo de lugar em que se sentia bem.

Não havia ninguém nas ruas, as lojas estavam fechadas e o parque de diversões parecia uma obra fúnebre.

- Vem comigo — Sophia disse, puxando o braço de Angela.

Ela a levou até a entrada do parque com pequenos puxões. Angela estava desconfortável e resistia ao gesto autoritário de sua namorada, mas algo em seu coração não a deixava resistir plenamente.

O portão de metal estava fechado com uma corrente e cadeado, mas quando Sophia olhou mais de perto notou que o cadeado não estava trancado. Seu olhar cheio de malícia disse o suficiente. O som da corrente escorregando e caindo ao chão pareceu mil vezes mais alto naquela rua deserta.

- Vem, não tem ninguém olhando e cê precisa se divertir um pouco.

- Não! Você é maluca? Isso é invasão e não temos tempo para essas suas brincadeiras infantis.

- Te garanto que não vai achar nada na rua. E sei que cê vai vir comigo — Sophia lançou um olhar desafiador enquanto suas mãos afastaram o portão de metal que rangeu.

O parque tinha uma aura peculiar, não era como um parque comum. O lugar parecia vivo e morto ao mesmo tempo. As luzes apagadas, os brinquedos sem movimento, mas mesmo assim conseguiam ouvir os gritos de êxtase e músicas animadas, sentiam o cheiro de algodão doce, pipoca e maçã do amor. Sentiam o calor das mil emoções que aquele lugar proporciona.

Elas caminharam uma do lado da outra, Angela um pouco aflita e Sophia se deleitando com tudo o que via ali. Nenhuma das duas havia percebido, mas andavam de mãos dadas.

Sophia parou e puxou de leve a mão de Angela, pedindo sua atenção. Ela estava parada em frente a uma barraca e em cima do balcão havia três bolas vermelhas de borracha. Era uma brincadeira de tiro ao alvo. Sophia apanhou uma das bolas e fez mira.

- Vou ganhar um prêmio para você.

Ela se concentrou e lançou a bola com força. Sua confiança estava mais afiada que sua mira. A bola atingiu a lona no fundo da barraca. Angela deu risada e lhe entregou outra bola. Sophia sorriu e sentiu que o humor de sua amada estava melhorando.

- Eu só estava aquecendo — lançou a segunda bola e derrubou todas as garrafas da pequena pirâmide de garrafas.

Sophia pulou o balcão da barraca e pegou um urso de pelúcia enorme que mal cabia em um abraço. Angela olhou para o prêmio com uma expressão infantil.

- Não vou carregar isso o dia todo — estava sem jeito, mesmo sem ninguém para vê-la segurar o urso de pelúcia pela mão, como uma criança.

- Que tal nós duas carregarmos ele, então?

Elas arrastaram o urso, cada uma segurando um de seus braços. Sophia não comentou nada sobre não estar cansada mesmo depois de andar por horas, mas fingiu para poder sentar em um dos cavalos do carrossel. Era o brinquedo mais bonito do parque. Sua base de madeira escura e os cavalos polidos e com pintura impecável. O centro era feito de espelhos e sua cúpula era adornada com desenhos alegres e molduras douradas cheia de lâmpadas. Assim que Angela sentou-se, Sophia foi até o painel de controle e ameaçou apertar o botão escrito início.

- Não faz isso, Sophia — Angela sussurrava sua súplica imaginando que ao ligar o brinquedo a cidade toda ouviria.

- Já era — seu dedo desceu ligeiro e com força no botão verde e então as luzes se acenderam e uma música animada de realejo começou a tocar.

Elas aproveitaram o passeio no carrossel. Ele girou e girou, ficou assim por muitos minutos já que não havia ninguém para desligá-lo. Sophia desceu de seu cavalo e se aproximou de Angela. Elas se olharam com ternura. Sophia fez um gesto com a mão, pedindo para que ela descesse do cavalo de madeira. Um pouco incerta do que estava acontecendo, Angela obedeceu e apanhou a mão estendida para ela.

Sophia a puxou para uma dança no brinquedo em movimento. Os passos pareciam confusos, principalmente pela rotação constante. Angela quase tropeçou por várias vezes e Sophia não tirava os olhos de seus pés para não fazer nenhuma besteira. Não havia dúvidas naquele momento, elas se abraçaram e se beijaram apaixonadamente. Para Sophia aquele era seu mundo em forma de pessoa, ela amava tudo em Angela e não se importava quando elas brigavam, pois sabia que sempre haveria o momento de desculpas, sabia que ela aturava suas piadas sem graça e até mesmo seu péssimo gosto para cozinhar.

O tempo passou e elas ficaram ali, se amando. O carrossel continuou dando suas voltas infinitas e para elas não havia mais nada no mundo. Angela suspirou e afastou o rosto de Sophia com gentileza.

- Já nos divertimos, agora precisamos ir.

Sophia não se opôs, ela esperou o carrossel a posicionar em frente ao painel e então saltou do brinquedo e apertou o botão vermelho que fazia o brinquedo parar e então voltou para dentro e sentou-se ao lado de sua namorada.

- Acha que seus pais vão gostar de mim?

- Acho que iriam sim — respondeu Sophia com um sorriso discreto.

O carrossel estava quase parado e Angela, pensativa, focou seus olhos na barraca de tiro ao alvo. Estava feliz de ter entrado no parque. Mais uma volta e seus olhos voltaram a olhar a mesma barraca, três bolas vermelhas de borracha em cima do balcão. Pensou em como fora engraçado ver Sophia errar o primeiro arremesso. Mais uma volta, dessa vez muito mais lenta, ela viu o urso de pelúcia na prateleira com os prêmios mais valiosos. Uma última volta, o carrossel parou e a barraca de tiro ao alvo estava de novo ali. Angela levantou-se e esticou o corpo para fora do brinquedo, seus olhos se fixaram, como que por magnetismo, no portão de entrada. Estava fechado. Havia uma corrente e um cadeado selando o parque. Angela se virou e antes que pudesse perguntar qualquer coisa para Sophia, ela entendeu.

- Você já sabia? — Angela tinha a voz trêmula.

- Sim, por isso vim contigo. Quero ficar com você.

Sophia se aproximou da beirada do carrossel e passou o braço em volta do ombro de Angela. Ela deitou a cabeça, apoiando-a nos cabelos de molas macias.

- Então nós… — Angela não conseguia terminar.

- Sim, no acidente. Aquela família também.

- E agora?

- Agora acho que encontramos nosso lugar especial. Vamos ficar aqui para sempre, uma com a outra — Elas se beijaram apaixonadamente.

Sophia ligou o carrossel mais uma vez e montou um dos cavalos de madeira.

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