O jacaré bonzinho

Eveline Santos
Coletivo Metanoia
Published in
4 min readOct 28, 2020
Foto: Eveline Baptistella.

Um jacaré-do-pantanal vive até 50 anos na natureza. Pode viver. É melhor explicar que um jacaré-do-pantanal pode viver até 50 anos na natureza. Sempre tem alguém para dizer que a natureza é cruel e blá-blá-blá… Eu costumava achar que a gente tinha uma fama ruim, sabe? Que as pessoas tinham medo da gente. Só que a verdade é que nós somos muito pacíficos. Eu preciso enfatizar isso: nós somos extremamente pacíficos. Basicamente, nós só atacamos para comer. Qualquer outro ataque é só mesmo em último recurso. Nós não queremos gastar nossa energia com agressões. Se você ouvir falar que um jacaré-do-pantanal atacou alguém pode ter certeza de que foi para proteger um ninho ou para se defender.

É justamente por ser tão pacífico que eu acabei aqui. E eu não sei se esse foi meu erro ou a minha salvação. O fato é que eu vivia num lugar bem razoável. Tinha o básico. Comida, lagos, umas praias pra pegar sol. Eu tinha minha turma. Nós não temos família, essas coisas de humanos, não temos nem bando, mas eu posso dizer para vocês que eu tinha uma galera: meus amigos, os outros jacarés. A gente convivia bem — bem melhor do que vocês humanos, inclusive.

O caso é que a cada dia nossa casa parecia menor. Era sempre a mesma coisa. Chegavam humanos em cima daquela coisa que solta fumaça e iam derrubando tudo. Logo, eles voltavam com outras máquinas e começavam a subir umas caixas enormes. Essas caixas onde vocês se abrigam — que vocês chamam de prédio, de repartição… O pior das caixas é que elas iam cobrindo as nascentes e nossos lagos foram secando. Logo, mal tínhamos o que comer. Acho que todo mundo sabe que, no desespero, nós, os jacarés, viramos canibais. Eu vou dizer: não façam isso quando aparecer alguém para destruir as casas de vocês. Deu muito errado para a gente. Fomos comendo os mais fracos, os mais novos… Fomos acabando.

Eu já estava bem desesperado quando coloquei a cara para fora do que restava da nossa mata. Fui andando por esse chão quente e duro que vocês chamam de asfalto, até parar num lugar com um solzinho e um pouco de água correndo pelo chão. Naquele momento, tinha duas hipóteses. Com sorte, eu pegava um pombo (eu sei, ideia maluca, impraticável). Ou então alguém me matava. Dos dois jeitos, meu sofrimento acabava.

Foi aí que eu descobri que os humanos não têm medo de nós. Em vez me enxotar, de me matar, eles só ficavam me olhando. Pegavam um aparelho e apontavam para mim. Depois aprendi que isso se chama celular. Pelo que eu entendi, a vida de todo ser humano depende disso, como nós, bichos, dependemos de água e comida. Elas ficavam um tempão com o tal do celular virado para mim. Era muito estranho. Algumas riam, outras pareciam emocionadas, tinha até aquelas que choravam! Um monte de gente saiu da caixa para me ver.

Eu estava tão cansado. Não sabia mais se ia conseguir voltar. Lembro que algumas fêmeas começaram a dizer que eu era “bonzinho”. Daí, aconteceu uma coisa incrível: me jogaram uma comida que eu nunca tinha experimentado. Parecida com algumas aves que eu já tinha caçado, mas sem nenhuma pena. Era um negócio gelado, mas bem decente.

Voltei para casa quando vi que o sol ia começar a descer. Não contei nada para os outros jacarés. O que eles iam pensar de mim? Eu estava confraternizando com o inimigo! Mas a fome é dura, né? E quando a fome apertou, eu resolvi voltar lá no asfalto. Sou fraco, sou mole, fui atrás do meu franguinho. Esqueci de dizer. Isso que as pessoas me dão para comer, elas chamam de franguinho. Todo dia, quando voltava para a mata, tinha mais um companheiro morto de fome. Já eu, o jacaré bonzinho, fui prosperando com o franguinho que os humanos me davam.

Todo dia, faço a mesma coisa, saio da minha lagoa que agora mais parece uma poça d´água e vou dar meu expediente no asfalto. As pessoas estão cada vez mais abusadas. Algumas colocam a mão em mim enquanto outro humano aponta o celular para a gente. O macho que me dá franguinho monta em mim, me pega pelo rabo e me roda. Os humanos em volta acham graça. Todos dizem que são meus amigos. Ninguém nunca me perguntou se eu quero fazer essas coisas. O tal do franguinho custa caro, se vocês querem saber.

Pelo que entendi sobre seres humanos e os outros animais, a amizade é um negócio em que vocês destroem nossas casas, nossos companheiros, depois dão franguinho para quem sobra e acham que está tudo bem. É verdade, eu sobrevivi. Mas toda noite, durmo numa lagoa vazia. Pelas minhas contas, só faltam uns 30 anos para eu ir encontrar minha galera.

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Eveline Santos
Coletivo Metanoia

Ainda em busca da frase de impacto ideal para convencer as pessoas de que sou relevante e mereço ser amada.