O Viaduto

Suzane Morais
Coletivo Metanoia
Published in
11 min readOct 19, 2020

Agora que sou velho e o tempo me obriga a parar e fazer um balanço da vida, procuro dela compreender um episódio que há muito me perturba. Veja, o que aqui vou narrar é fonte autêntica de estranhamento, causa verdadeira de espanto. Assim foi e assim o é. Tendo meu pai estruturado carreira sólida como encarregado numa empresa renomada de engenharia, viu todo o seu projeto de construir um viaduto na região central do Rio de Janeiro ir por água abaixo quando a firma decretou falência. Essa obra deveria levar o seu nome e ser o legado de nossa família, mas foi embargada pelo ministério público. Eram tempos difíceis para a economia do país e a área de construção civil foi uma das mais afetadas.

Na minha lembrança, meu pai era homem graúdo e de envergadura de mais de dois metros. Tinha uma saúde de ferro e um físico de minotauro. Até hoje não consigo entender como ele aguentava a rotina exaustiva de quase doze horas diárias de trabalho. Na verdade, da minha infância eu pouco lembro do meu pai no convívio de casa. A hora do dia que eu mais gostava era quando ele chegava lá pelas dez horas da noite, me cobria com o lençol e me dava um beijo de boa noite. Ele era a rocha da casa e eu me sentia seguro por saber que ele existia. Quando estava em casa, ficava sem camisa e com uma garrafa de cerveja na mão. Tinha a mania de construir peças de madeira e, de vez em quando, fazia uns carrinhos para mim que eu brincava tanto, mas tanto que dava até calo nos dedos. Às vezes, quando estava de bom humor, meu pai me levava para soltar pipa e era como se só existissem nós dois no mundo durante horas eternas na minha memória. Ele me ensinava como pegar arraia avoada e fazer pipa de rabiola. Depois, preparava um copão de café com leite para mim e a felicidade cabia inteira na palma da mão, daquelas de doer o peito estufado de tanto suspiro de alegria.

Meu pai era conhecido como “Seu Portugal”, porque na vila onde a gente morava ele destoava por ser branco igual cera de vela. Ele tinha olhos azuis e falava alto, de um jeito esquisito que me dava vergonha — talvez fosse a surdez que já anunciava a chegada, provavelmente pela exposição continuada ao barulho das obras em que trabalhava, além da predisposição genética. Minha mãe dizia que ele era homem bicho-do-mato, que havia vindo para a cidade grande ganhar a vida, mas que não perdera o jeito matuto. Da minha família paterna, eu sabia pouco ou quase nada. Aliás, sabia apenas que eram de origem humilde e tinham uma fazenda pequena de milho no interior de Minas Gerais. Mas conhecer eles mesmo, nunca conheci, e me entristeço um pouco ao pensar nisso hoje. Minha tia Rosana me dizia que tinha dois tios e alguns primos de lá. Para falar a verdade, o que sabia era de recortes de falas que ouvia escondido da mesa de churrasco quando era criança, antes que me mandassem sair, porque aquilo era conversa de adulto. Nos dias de festa, ele ligava para os parentes para dar felicitações e às vezes chegava presente nos aniversários. Suspeitava que a distância era questão de briga entre irmãos.

Nos finais de semana, mamãe fazia um almoço bem gostoso e a gente se sentava na mesa para comer: meu pai na ponta, eu do lado dele e minha mãe em pé ao lado da mesa. Depois, quando todos se levantavam já satisfeitos, meu pai ia ver televisão, eu ia para o meu quarto tirar uma soneca e mamãe limpava a mesa, lavava a louça e então podia, enfim, comer num canto da cozinha. Minha mãe era dona-de-casa e batia no peito orgulhosa que filho dela não tinha que lavar um prato sequer, porque tinha mãe. Comia pouco, como se estivesse sempre sobressaltada pela respiração da geladeira. Tinha sempre alguma coisa para fazer. Minha mãe era muito religiosa e espalhava imagens de um Jesus loiro de mãos dadas pelas paredes da casa para proteger de mau olhado, que me davam medo, porque pareciam que estavam olhando para mim. Engraçado que ela colocava alguns Budas ao lado de um altarzinho de Nossa Senhora com uns cristais perto da porta, só para garantir.

Mamãe era bonita e tinha um olhar distante e triste, com umas olheiras azuis que, de tanto estarem ali, já faziam parte da moldura do seu rosto. Na parede da sala, tinha um grande retrato de mamãe bem no centro, onde estava toda produzida: cabelo escovado de salão, roupa nova de festa e maquiagem bem montada, parecida com aquelas fotos de estúdio. Meu pai, também bonito e bem-apessoado, era de um tipo caladão que atraía a atenção das vizinhas, que davam sempre bons-dias demais na porta de casa, de manhã cedo quando ele saía para trabalhar. É porque homem bom mesmo de ser pai de ficar em casa eram poucos, a maioria dos filhos da rua não tinha pai certo e as mulheres invejavam a minha mãe que tinha marido de papel lavrado no cartório. Daí que uma vez meu pai, que nunca vi entristecer nem em enterro de parente, emburrou que nem criança com dor de barriga, quando minha mãe saiu de casa. Passou duas semanas na casa da minha avó comigo, sem nem mostrar alma viva, e meu pai ficou lá sozinho. Depois, voltou tudo ao normal e o retrato de mamãe apareceu no meio da sala. Fiquei durante anos sem saber o que aconteceu, só depois de adulto soube que minha mãe descobriu enrabicho do meu pai com alguma matrona imoral. Nunca tive coragem de tocar no assunto, porque ferida de orgulho de mulher não sara é nunca.

Minha tia Augusta me contou que papai conheceu minha mãe quando veio ao Rio de Janeiro no início dos anos setenta para tentar uma vaga de auxiliar de pedreiro. Ele era muito jovem nessa época, devia ter uns vinte anos. Ele não conseguiu o emprego, mas ficou muito amigo do meu tio Vaz. Um dia, num almoço de domingo, conheceu a minha mãe que devia ter uns dezoito anos. Tia Ruth disse que foi amor à primeira vista. Meu pai pediu a mão da minha mãe para o meu avô e seis meses depois estavam os dois casados. Sem recursos, foram morar temporariamente no terreno da casa dos meus avós numa comunidade no subúrbio do Rio, de onde nunca saíram. Ajeitaram uma casinha e subiram os muros do quintal. Criaram galinha, gambá e tartaruga.

O casamento dos meus pais seguia para mais de vinte anos. Era uma rotina sadia, de pão e café na mesa, às seis horas da manhã. No dia-a-dia era mamãe que ralava com a gente: hora de levantar, caçar uma escova de dente, arrumar a cama, tomar banho, tomar café e ir para a escola. Mas papai quase não ficava em casa, fazia serão na firma para tentar terminar algum serviço. Ele havia prometido que o viaduto seria a sua aposentadoria. Depois de quase trinta anos trabalhando na mesma firma de engenharia, galgou posições chegando a encarregado, “posição de prestígio” — ele dizia. Enfim, teria o seu nome vinculado ao grande projeto de um viaduto na região central do Rio de Janeiro, obra encomendada pela prefeitura. A construção, que já havia começado, tratava-se de uma empreitada ambiciosa para dar forma a um elevado que fosse da Avenida dos Enjeitados até à Praça da Aliança, região estratégica de transporte de carga e de passageiros do município. Porém, o que seria a novidade de campanha para o então prefeito Donivella foi o seu fracasso. Um grande esquema de superfaturamento e corrupção foi denunciado ao ministério público, que embargou a obra pela metade. A gestão seguinte não quis o seu nome ligado a rixas antigas e, desde então, o viaduto seguia incômodo como uma colossal águia inerte, pousada no coração da cidade.

Depois da tragédia, meu pai, que antes era forte e positivo, tornou-se um fantasma arrastando-se pela casa. Ao longo dos anos, à medida em que o concreto do viaduto ia se deteriorando pela falta de manutenção e as vigas já apontavam a corrosão à mostra, meu pai ficava cada vez mais franzino e seu rosto cada dia mais pálido. O processo de desgaste era notório e seu corpo ia oxidando, ficando, aos poucos, amorfo. Ele que, para mim, mais parecia um titã, passou a ter o andar assustado de um menino. Nossa mãe começou a sofrer dos nervos e a remoer o que poderia ter feito para que aquilo não acontecesse. Como a empresa de engenharia, responsável pelo viaduto, não conseguiu se recuperar da má fama, já que ficou provado que o dono da firma participou da organização de caixa dois e fraude aos cofres públicos, foi decretada a falência da companhia e todos os funcionários foram demitidos, inclusive o meu pai — o que abalou ainda mais o seu estado emocional. Minha mãe decidiu que seria melhor morarmos com meus avós por uns tempos, mas o processo depressivo do meu pai se tornou pior. Deu para beber e perambular pelas ruas, que nem o meu avô quando era mais jovem. Meus pais passaram a brigar constantemente.

Certo dia, sem explicação ou aviso, meu pai sumiu. Vasculhamos hospitais, emergências, igrejas, delegacias, abrigos, mas nada de achá-lo. Procuramos por dias e noites a fio. A falta de notícias torturava a todos com a possibilidade de acontecer o pior. Quando eu já começava a desanimar, um conhecido me disse, de forma despretensiosa, que havia visto um homem parecido com meu pai embaixo do viaduto inacabado no centro da cidade, mas que achava que era mais provável ser produto de sua imaginação. Na manhã seguinte, decidi ir até lá para conferir se era mesmo possível essa informação e, para minha surpresa, era mesmo o meu pai! Ele estava sentado de costas, próximo a uma das pilastras da obra, mas não consegui chegar perto dele, porque havia uma enorme barreira de entulho e de lixo entre nós dois. Eu chamei: “Pai, sou eu! O que o senhor está fazendo aí? ” Ele permaneceu imóvel. Estava com os cabelos emaranhados e a barba grande e grisalha, mas dava para ver que era ele. Trazia as roupas rasgadas e puídas pelo uso. Reforcei a voz e gritei alto:

“Pai, por que você foi embora? ”

Ele me escutou. Levantou devagar e se voltou para a minha direção. Eu tremi, profundo, por dentro. Caí tentando alcançá-lo, mas ele desapareceu num morro de cascalho. Subi aos barrancos e vi o seu vulto numa sombra. Porém, antes que pudesse avançar, fugi, tropeçando nas pedras. Se agi assim, mal, foi porque o seu rosto tinha as feições de uma aparição, como se viesse da parte do além. Não contei a ninguém o que houve. No dia seguinte, de manhã cedo, fui lá cumprir o mesmo procedimento desatinado. Estava obstinado no propósito de descobrir o que houve e o porquê do seu sumiço repentino. Era de manhãzinha quando eu cheguei. Ele parecia que me esperava na mesma posição e no mesmo lugar. Eu disse: “Pai, desce daí! Volta pra casa! ”

Mas ele não respondia, apenas me encarava com uns olhos de vidro e uma expressão de lamento, que me arrepiavam a espinha. Pedi mais algumas vezes que descesse, cheguei a implorar, socando estupidamente os escombros. Tudo em vão, pois quanto mais eu chamava e tentava me aproximar, mais ele se afastava e se embrenhava no lixo. De perto, era possível ver que o entulho era como um mundo, com várias brechinhas entre os pedaços de madeira podre e os restos de materiais usados, onde se depositavam toda a sorte de dejetos e insetos mortos. Poderia mesmo dizer que existia certo padrão na sujidade.

Deu-se que comecei a tomar gosto por esse hábito medonho. Todo dia, de manhã bem cedo, eu ia lá no viaduto abandonado encontrar o meu pai, mas acabei por desistir de saber o motivo dele ficar ali. Dia após dia, eu repetia o mesmo processo: eu falava, contava da minha vida, e ele nada dizia, apenas me ouvia, silencioso como um túmulo. Consumido talvez pelo remorso ou pelo egoísmo, eu não queria mais perturbá-lo, pedindo para que saísse dali, quando estava claro que havia escolhido estar naquele lugar. Era estranho, porque, pela primeira vez, eu sentia que estávamos realmente próximos e me sentia culpado por nunca ter tentado ficar mais íntimo dele antes. Meu pai sempre foi homem sério e honesto, mas também muito quieto e bravo. Ai se eu olhasse torto para ele, que havia de ver a vara cantar! Para ele, homem que é homem não podia chorar, então eu aprendi, desde cedo, que era proibido sentir. Por isso, eram raras, para não dizer inexistentes, as conversas entre nós dois, principalmente depois de adulto. Minha mãe colocava panos quentes, dizendo que eu tinha que compreender que meu pai era de um outro tempo, criado no interior. Apesar das brigas que, de vez em quando, aconteciam entre nós, eu tinha muito orgulho do meu pai. Ele havia vencido as adversidades e se esforçado para dar o de melhor para mim e para a minha mãe. Eu, que nessa época tinha acabado de completar dezoito anos, como o mais velho, deveria cuidar da casa e da minha mãe.

Semana após semana eu ia no lugar marcado para repetir a mesma rotina matinal. Comecei a levar comidas que sabia que ele gostava e artigos de primeira necessidade, como escova de dentes e cobertores. Também levava roupas e outros objetos queridos que ele havia deixado para trás, como um rádio antigo de pilha que ele gostava de ouvir à noite. Aquele era meu momento especial, a minha parte preferida do dia. Aos poucos, comecei a não querer mais ir para o estágio no escritório, nem voltar para a casa e descansar. Perseguia-me a ideia fixa de me juntar ao meu pai na invenção de vigiar o viaduto. Desejava suceder o seu lugar no ofício de martelar o mistério, numa loucura sem fim. Dizer a ele que podia, enfim, descansar. Já não dormia mais. Joguei fora o telefone, depois de muitas ligações perdidas. Comecei a faltar no trabalho várias vezes, dando desculpas umas mais descabidas que as outras até conseguir ser mandado embora. Corroía-me, porém, a dúvida. Acaso meu pai não sentia nenhum afeto por nós? Não queria nem saber da mulher e do filho? Mas, por respeito e carinho, é que, quando me elogiavam por algo bem feito, dizia: “Foi meu pai quem me ensinou assim…”.

No fim de seis meses, quando a minha alma já estava prestes a perder os limites, tomei uma decisão para me salvar. Contratei uma empresa para limpar o entulho da obra e internar o meu pai numa clínica psiquiátrica, nem que fosse à força. Na manhã seguinte, no horário habitual, fui com enfermeiros, caminhão, ambulância e uma equipe técnica para realizar o serviço de limpeza e de deslocamento para o hospital. Chegando ao local, porém, ele não estava lá me esperando, como de costume. Foram horas de trabalho, mas ninguém foi encontrado. Até mesmo as roupas e os objetos que eu levei desapareceram. Não havia ninguém morando ali! No mesmo dia, criei coragem e fui à casa da minha mãe contar os eventos bizarros das últimas semanas e tal foi a minha surpresa quando lá cheguei e, antes que pudesse confessar qualquer coisa, ela me disse que haviam finalmente encontrado o meu pai num hospital da zona oeste carioca. Depois de meses inconsciente, internado às pressas e posto em coma induzido devido a um acidente de carro, ele havia acabado de despertar.

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