Ondas

Rene Spoladore
Coletivo Metanoia
Published in
3 min readFeb 1, 2021
Foto por Bradley Hook

Nunca vou me esquecer daquele dia. O dia em que ele me machucou pela primeira vez. O sangue escorria do meu nariz e meu corpo tremia. Foi a primeira vez em que eu vi sangue, foi como mudar o canal da televisão, ver outro mundo sendo exibido enquanto você se distancia daquilo que assistia anteriormente. Me sentia com medo e acuada, sem coragem de olhá-lo ou tocá-lo. Ele, com toda aquela violência, rugindo como uma fera imortal e com o aroma de mil vidas, não se importava comigo e mesmo assim não consegui odiá-lo. Mesmo com tudo, eu o amava, por mais que duvidasse disso em um momento ou outro, buscando em meu coração eu sabia que não poderia viver sem ele.

Mas aquele sangue, uma linha escarlate pintando meus lábios, me fez pensar se eu estava errada. Deveria largar aquela vida e buscar outro amor? Não sei se conseguiria, por mais que, naquele momento, eu o odiasse por me tratar da forma como me tratou, eu olhei bem fundo no meu coração. Ah, o coração sempre agindo por vontade própria sem se importar em ser racional. Meu coração estava indomável naquele momento, assim como ele. Naquela linha de sangue não havia ódio, disso eu tinha certeza. Acho que ele também sabia disso desde o início, quando me machucou. Ele não obedece regra alguma, apenas segue em frente, como uma força imparável e fluindo da forma que se sente melhor, naquele dia eu entendi isso e essa força imprevisível me fez amá-lo de uma forma misteriosa, era um amor que nunca pensei que sentiria.

Esses sentimentos conflitantes por ele eram a causa da minha ansiedade. Ansiedade de tê-lo só pra mim, de domá-lo e de mostrar que eu poderia subjugá-lo. Como fui tola. Assim como muitas outras pessoas, eu acreditei que poderia fazê-lo obedecer. Mas uma criatura como ele não pode ser aprisionada na vontade de pessoas como eu. Mesmo sendo tola eu continuei. Ainda continuo. Sempre dou aquele passo em sua direção, esse passo pode fazê-lo me levar a um passeio cheio de prazeres por suas formas ou pode fazê-lo me derrubar e ver sangue mais uma vez, como tantas outras. Como agora.

Mas não me importo, nem mesmo agora, enquanto estou caída. Eu me levanto e fico firme. Tenho o olhar fixo nele. Minha confiança vem aos poucos, em pequenas ondas. O sol que acaricia meu rosto ajuda a me reerguer. Respiro fundo e lentamente e a maresia penetra meus pulmões com aquele aroma que me é tão familiar. Ando em sua direção e sinto meus dedos afundarem na areia molhada e então um delicado lençol de espuma cobre meus pés. Ao fundo ouço seu rugido e com ele uma onda que quebra, espalhando-se e correndo em minha direção. Ele também me ama, penso.

Posiciono minha prancha ao lado do meu corpo, ela aponta para o mar exibindo minha coragem, meu orgulho e meu amor. Meus pés fazem uma corrida firme, espalhando água para os lados a cada pisada e minha respiração fica mais rápida. Não demoro para sentir a água salgada respingar em meu rosto e eu sentir o sabor salgado do meu grande amor. Eu me deito na prancha e nado para o seu abraço gelado, mas que tanto me acalenta. Você pode me derrubar mais uma vez e me machucar mais uma vez, mas não importará, pois eu voltarei para seus braços e em pé em cima da minha prancha irei domar cada uma de suas ondas, pois meu amor por você nunca findará.

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