Onze dias em dezembro

Eveline Santos
Coletivo Metanoia
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15 min readDec 15, 2020

- O dia está chegando. Você tem certeza?

- Já, eu já falei.

- Você vai usar sua oportunidade para encontrar uma mulher que escreveu uns livros obscuros, que ninguém leu, que não fizeram diferença nenhuma?

- Eu gosto desses livros obscuros.

- Então leia. Mas perder essa chance com isso.

- Eu vou encontrar a Agatha Christie. Cada um de nós recebe uma viagem durante a vida. A minha vai ser assim.

- Você vai voltar centenas e centenas de anos para dar um “oi” a uma escritora… com tantas coisas que você pode consertar. Nós somos poucos e…

- Eu vou não vou só dar um oi. Eu vou pedir um autógrafo também.

Reprodução: Hutton Archv

A conselheira suspirou pesadamente. Eliza não se importava. O mundo não tinha efetivamente melhorado. Evitaram a chegada das sementes de soja no Brasil, mas elas apareceram em outro lugar e as coisas continuaram do mesmo jeito: gerações deformadas e doentes por causa dos agrotóxicos… Foi a mesma coisa com a tentativa de “criar consciência ambiental” nas populações do século XX. E quando aceleraram a descoberta da vacina para a tal peste de 2020? As pessoas continuaram desmatando, traficando animais do mesmo jeito. Uma doença muito pior apareceu apenas dois anos depois. Tiveram algum sucesso evitando a ascensão de alguns governos totalitários. Era fácil brincar com débeis mentais eleitos pelas forças de mercado. Com Hitler, no entanto, ninguém tinha mexido ainda. O capitalismo ruiu e voltou quantas vezes mesmo? Por que ela devia desperdiçar sua viagem no tempo para salvar o Planeta? Além disso, Eliza tinha um plano. Era um teste. Eles voltavam sempre muito bem intencionados. Determinados a despertar “o melhor da humanidade”. Ela ia trabalhar com o que as pessoas têm de pior. Quer dizer, com uma das coisas que as pessoas têm de pior. Se ela estivesse certa, sua viagem não seria um desperdício total.

Era a madrugada de 3 de dezembro de 1926 quando se viu no meio da estrada de terra. Não tinha pressa. Agatha não ia se matar. Tinha publicado outros quatro livros depois daquela data. Era um talento promissor naquele momento, mas nunca mais teve reconhecimento. Seus trabalhos foram saindo por editoras cada vez menores e ela morreu num canto do Reino Unido, esquecida. Encontrar aqueles livros tinha sido uma sorte enorme. Quando entrou na memória universal, Eliza estava procurando histórias sobre gatas. Um erro e apareceu a senhora Christie. Não era possível que aquele gênio criativo tivesse vivido na semi-obscuridade enquanto tanto lixo prosperou ao longo dos anos. Ali, havia muito pouco que pesquisar sobre a vida da autora, mas sua fé na corrupção humana nunca a decepcionava. Passou a transferir seus direitos para outros viajantes em troca de informações que pudessem obter quando iam ao passado. Praticamente cada pessoa que escolheu visitar a primeira metade do século XX ficou com um direito dela.

Foi assim que descobriu sobre o “evento” 3 de dezembro. Tudo que conseguiu apurar dava conta de que Agatha teve um colapso nessa noite. Foi achada vagando na área do lago Silent Pool, totalmente desorientada. Chorando, gritando. Bateu na cara de um guarda que a abordou e foi detida. Tudo foi publicado num jornal da região. Ela acabou passando alguns meses numa “casa de repouso”, um nome bonito para o lugar onde enfiavam mulheres julgadas loucas naquela época. Era a partir dali que a carreira tinha entrado numa espiral descendente. Quando saiu da internação, era uma mulher “marcada”.

Com muito custo, Eliza descobriu que Agatha havia sido abandonada pelo marido naquela noite. Era uma época em que ainda havia o casamento por amor. Uma prática que destruiu muitas vidas. Talvez não tantas vidas quanto a “flexibilização” das leis de proteção ambiental, mas ainda assim…. todos esses pensamentos iam passando pela mente da viajante enquanto se encaminhava para as margens do lago. Ela sentiu as mãos suando quando viu a silhueta da escritora em meio à bruma. De repente, percebeu que seu plano era péssimo e se deu conta do peso do seu projeto. E se Agatha se assustasse? Se se jogasse no lago? Podia ouvir seu choro alto e desesperado. Eliza nem fazia ideia do que era se sentir assim.

- Moça, moça!

A figura parou por um momento e Eliza se deu conta de que ela era bonita. Os cabelos curtos, os olhos ligeiramente separados, lábios finos. Também era suficientemente jovem. Por que o marido havia arrumado outra mulher? A viajante sabia que durante muitas eras beleza e juventude eram tudo que uma pessoa do sexo feminino precisava para ser amada. Agatha tinhas as duas coisas. Talvez pesasse o fato de ser inteligente. Essa não era uma qualidade muito desejada em mulheres pelo menos até a última década do terceiro milênio.

- Moça, eu estou perdida, você pode me ajudar?

- Eu também estou perdida! Não posso ajudar ninguém — respondeu, tentando enxugar as lágrimas.

- Por favor, eu preciso de ajuda. Foi Deus que colocou você aqui.

Ela tinha descoberto que Agatha era muito cristã. Seu plano girava inteiramente em torno da chamada vontade de Deus. Calculou que aquele apelo era manipulação barata, mas surtiria efeito. Afinal, a oportunidade de salvar alguém parecia ser a única coisa a exercer um fascínio imutável nos humanos. Eles estavam tentando salvar uns aos outros desde sempre. Inclusive, a própria Eliza, de um jeito ou de outro, estava usando sua viagem para tentar salvar uma pessoa — mas pelo menos não era megalomaníaca de querer salvar o futuro da vida na Terra. Agatha pareceu confusa. A viajante insistiu, precisava levar a escritora para a estação de trem.

- Eu não sou daqui. Eu estou perdida. Por favor, você precisa me ajudar a sair daqui. Eu estou fugindo.

- Eu estou com um problema grave…

- Por favor, só você pode me ajudar, eu não sei onde eu estou. Ele vai me matar.

Os olhos de Agatha se estreitaram, só um pouco. Que mulher que acabou de sofrer de uma traição não vai querer ajudar outra vítima de um homem?

- O que você precisa?

- Eu preciso chegar na estação. Eu preciso pegar um trem para longe daqui.

- Eu te levo, vem.

Agatha foi caminhando em direção ao carro sem saber que Eliza já tinha arrancado a chave e jogado na água. Inicialmente a viajante achou que teria que arrancar alguma peça para provocar um defeito — aprender como fazer isso num carro tão antigo lhe custou seu direito à natureza. Contudo, não podia reclamar. Foram minutos e minutos procurando a chave, até Agatha concluir:

- Eu não estou pensando direito, eu devo ter perdido. Não está em lugar nenhum. O que nós podemos fazer?

- Você sabe chegar lá, a gente pode ir andando? Por favor, eu tenho que sair daqui.

Não se enganou ao imaginar que Agatha era uma mulher determinada. Era uma boa caminhada, mas a escritora não vacilou. Foi passando a mão pelos cabelos, alisando a roupa. Tentando ficar mais apresentável. As duas seguiram caladas. Eliza não sabia se aquilo era indiferença ou respeito. De qualquer forma, tinha planejado tudo para que a conversa acontecesse já dentro da estação. E assim foi. Mas só depois de explicar a Agatha que não tinha dinheiro e que precisaria que a autora lhe comprasse uma passagem para Harrogate. Eliza achou justo que a escritora gastasse algum dinheiro, afinal havia trocado um monte de direitos para conseguir tudo que ofereceria para ela dali por diante. Não podia contar, no entanto, com o gesto que viria a seguir:

- Você precisa comer. O trem ainda vai demorar. Eu vou te pagar uma refeição. Vamos — disse Agatha, novamente tomando a dianteira e seguindo para um pequeno café, que estava começando a abrir.

Quando se viram diante da comida, Eliza atacou a parte mais difícil. Seu plano, ela se dava conta, era totalmente furado.

- E se eu disser que foi o contrário?

- Que contrário?

- E se eu disser que Deus não colocou você no meu caminho? Na verdade, Deus me colocou no seu caminho.

Agatha ficou entre um sorriso e um esgar. Mas era uma mulher curiosa.

- Como assim?

- Você me promete que não vai sair daqui correndo? Que vai me ouvir?

- Eu certamente não vou sair daqui. Acho que você me deve uma explicação.

Agatha pareceu crescer, a postura ficando mais ereta, o corpo se inclinando para frente, o olhar ganhando intensidade. Era exatamente assim que Eliza imaginava Agatha Christie. Ela queria que Agatha fosse assim pelo resto da vida, aquela emanação de segurança e doçura ao mesmo tempo. Não uma mulher que acabou seus dias destruída por causa de um marido safado.

- Deus me mandou aqui porque vai acontecer uma coisa muito grave na sua vida, Agatha.

- Então você sabe meu nome?

- Sim, você é Agatha Christie. Seu marido se chama Archibald e acabou de te deixar para ficar com uma mulher chamada Nancy Neele.

- Ah, sim. Deus mandou você. Deus ou ela? Deus ou ele? Ou foram os dois que te enviaram para evitar um escândalo?

Eliza não pensou nesse cenário. Mas fazia sentido. Era mais fácil acreditar que aquilo era coisa de um casal de amantes do que de Deus. Felizmente, Agatha estava indignada demais para ir embora. Eliza tentou pensar rápido.

- Eu vim aqui para promover o escândalo. Se você concordar. Eu posso te provar que Deus me mandou. Eu sei de coisas que ninguém sabe.

- Como o que?

- Eu li cada um dos seus onze livros.

- Sete livros. Eu tenho sete livros.

- Mas você vai escrever pelo menos mais quatro livros. Veja se você não anda pensando nisso: Poirot e o Hastings…

- Capitão Hastings.

- Perdão, Poirot e o Capitão Hastings enfrentam uma organização internacional, com pessoas de diferentes países. Você tem um vilão chamado Destruidor, que usa disfarces…

- E o que mais? O que mais você sabe?

- Uma rica herdeira é encontrada assassinada num trem. Ela tinha uma fortuna em rubis que foi roubada. Alguém sabe disso? Você já teve essas ideias?

- Sim.

- E você já contou para alguém? Ou é algo que só eu sei porque Deus me disse.

- Olha, o que uma moça estranha e pequena feito você poderia fazer por mim? Ainda mais em nome de Deus. Como você poderia me ajudar com meu casamento?

- Não! Não, você não quer ajuda com o seu casamento. Seu marido é um imprestável. Eu vim aqui porque Deus tem um plano e me mandou para levar o plano adiante. Mas você precisa aceitar.

- Você quer que eu aceite uma coisa que nem sei o que é?

- Agatha, eu vou te falar do plano. Só que eu quero que você tenha a mente aberta. Você vai precisar ter muita coragem.

- Ah, meu Deus, você não é uma daquelas pessoas, aquelas pessoas…. como é que fala? Você não é uma espírita, não?

Eliza sentiu que estava perdendo tempo. Decidiu que deveria ser mais firme também.

- Agatha, sua vida está em frangalhos. Deus me mandou. Tudo que eu peço é para você me ouvir. Mas se você não quiser… eu tenho certeza de que sua mãe vai ficar decepcionada.

Obviamente, aquilo apertou algum botão dentro da escritora. Eliza sabia que a mãe dela havia morrido há pouco tempo, lhe causando um grande sofrimento.

- Eu nem te conheço, você não pode falar da minha mãe. Você é uma dessas videntes, charlatãs…

- Agatha, me ouve. Seu marido é um idiota, ele não te apoiou nos momentos em que você mais precisou. Eu vou dizer como vai ser o seu futuro se você voltar agora para aquele carro. Você vai começar a chorar no momento em que sair daqui. Vai chegar no lago descabelada, com o rosto inchado, cheia de desespero. Vai encontrar dois policiais e eles vão ser totalmente babacas, vão te levar ao limite. Você vai bater na cara de um deles. Você sente que seria capaz de bater numa pessoa agora?

- Certamente. Eu bateria até em você. Só por estar aqui se aproveitando do meu dinheiro e falando essas coisas.

- Pois bem. Você vai ser detida. Seu marido vai ver uma oportunidade nisso. Ele vai te provocar até você partir para cima dele com uma garrafa. A ideia de bater nele com uma garrafa de licor antiga, herança de família, já passou pela sua cabeça?

O ataque com a garrafa de licor era uma informação preciosa. Estava num boletim de ocorrência que Eliza conseguiu em troca de um ano do seu direito de trânsito. Mas ela realmente não sabia se Agatha já havia olhado para a garrafa e pensado naquilo. Ainda assim, a escritora levantou e abaixou os olhos rapidamente, depois mordeu os lábios e disse:

- Aquela garrafa… Você consegue ver o que eu penso?

- O que eu posso dizer é que se você voltar sua vida vai sair totalmente dos eixos. Você vai ser tomada por uma doença chamada depressão, seu marido e a Nancy vão ficar com a Rosalind. Seu futuro vai ser entrar e sair de instituições para doentes mentais. Você vai viver longamente e vai sofrer muito.

- E você pode mudar isso?

- Isso depende de você. Se você seguir o plano… as chances são boas.

- Chances. Você é enviada de Deus e não pode me dar certeza? — ela deu uma risada.

- Nós temos pouco tempo. Você quer ouvir? Se não achar bom, pode ir embora e usar isso para escrever um livro. Mas aproveite bem a ideia, porque você só vai escrever mais quatro livros e quase ninguém vai ler.

Agatha apenas assentiu com a cabeça. A viajante calculou que ela parecia gostar mais de escrever do que do marido. Ela também tinha mencionado a perda da guarda da filha. De certo, ela podia se virar sem o homem mas não sem o trabalho e a criança. Eliza tinha trocado seu direito de reprodução há muito tempo, nem podia imaginar o que uma mulher sentia por sua descendência. Tendo isso em mente, prosseguiu:

- Essas passagens que você comprou. É você quem vai usar.

- Harrogate? — Agatha deu uma risada — Esse é o seu plano? Me mandar para Harrogate. Eu vou ficar a 300 quilômetros da minha família? Abandonar minha filha. Como isso vai me ajudar?

- Sim. Eu reservei um quarto para você num Hotel Hidropático, muito luxuoso, o Swan. Você vai ter tempo para pensar, se acalmar. Está tudo preparado. Tem uma mala com roupas na recepção, inclusive roupa de banho.

- Nossa, que bom que você pensou nisso. Deus quer que eu tome banho de piscina enquanto minha família desmorona? — pontuou com ironia.

- É um tratamento de saúde por meio da água. E não pense que você não vai fazer nenhum sacrifício. Como eu disse, vai requerer muita coragem.

- Coragem? O tratamento consiste em afogamentos?

- Agatha, não vire uma mulher amarga. Isso não vai te fazer nenhum bem. Você vai ficar onze dias no Hotel. Eu vou sair pelo país divulgando o seu sumiço, conversando com repórteres, passando pistas falsas do seu paradeiro até o dia catorze, quando eu vou manobrar a situação para a polícia te encontrar.

- Você quer que eu me exponha dessa maneira?

- Esse é o sacrifício. Todos vão saber que o seu marido te largou, que ele arrumou outra mulher. Mas isso vai te tornar muito famosa, todos vão querer comprar o seu livro. Você vai virar uma escritora que todos querem conhecer.

- Eu quero que as pessoas conheçam minha obra, eu não quero ser famosa.

- E vingança? Você quer vingança daqueles dois?

- E Deus trabalha com vingança?

“Que mulher afiada”, pensou Eliza.

- É claro que sim! Você nunca ouviu falar da ira divina? Sinceramente, as pessoas aqui têm umas ideias muito erradas sobre Deus, quando bastava ler um pouco melhor o velho testamento…

- Ok. Eu vou até Harrogate, passo onze dias num hotel fazendo um tratamento hidropático, você coloca a polícia atrás de mim e em que isso vai contribuir para eu, por exemplo, não perder a minha filha? Já que você diz que ela vai ficar com o pai e a amante.

- A imprensa! Eu vou colocar a imprensa atrás de você! A ideia é que saia em todos os jornais. Todo o Reino Unido te procurando.

- A imprensa e a polícia… E quando finalmente me acharem? Em que isso vai ser melhor do que voltar agora para o carro e ter um colapso? Não vão me achar louca do mesmo jeito?

- Agatha, eu gostaria que a partir desse ponto você não questionasse mais os desígnios de Deus porque estamos ficando sem tempo.

- O que mais Deus vai querer de mim?

- Que você minta. Ah, por favor, não faça essa cara de horrorizada! Eu sou enviada de Deus e basicamente menti para você o tempo todo até conseguirmos parar aqui.

- Eu não sei se quero levar uma vida de mentiras.

- É só uma mentira. Você pode fingir que nunca aconteceu depois. Você só vai precisar dizer que perdeu a memória. Inclusive, sua reserva no hotel está em nome de Tereza Neele.

- Mas…

- Isso, é o sobrenome da vigarista. Esse é um toque de classe. Você vai dizer que teve um colapso, que não se lembra como foi parar em Harrogate.

- Em que isso é diferente? Quer dizer… Isso não é uma coisa de mulher louca? Do mesmo jeito que bater num guarda?

- São dois cenários. No primeiro, você é uma louca agressiva, sem condições de viver em sociedade. No segundo, você é uma mulher com o coração partido, vítima de um homem sem caráter. Você é mulher, você sabe muito bem como isso tudo funciona. Você não vai bancar a feminista agora, né? Você vai ter tempo para isso depois…

Elas se encararam. Eliza sabia que a situação estava degringolando rapidamente e nada fazia sentido. Pelo menos, havia conhecido Agatha Christie. Sentiu todo seu corpo se tensionar enquanto a autora tomava fôlego para começar a falar:

- Eu não tenho a menor dúvida que você não é uma enviada de Deus. Tenho certeza também de que você não tem nada a ver com meu marido e a… a tal Neele. Sua conversa é bem estranha, mas eles não têm inteligência nem para isso.

- Você conhece bem o seu marido, isso eu posso dizer.

As duas riram. Eliza gostou daquilo. Partilhar uma risada com Agatha Christie. Agora que o tempo estava se esgotando, ela tentava se consolar com isso. Seus onze dias no passado se resumiriam a vagar por aí, tentando não pensar na tragédia que teria início na vida da escritora. Pelo menos, ela não estaria passando vergonha como tantos que viajavam prometendo salvar o Planeta e voltavam sem exercer quase nenhum impacto.

- Como é seu nome?

- Thyrza Grey — Deu um nome falso sem saber direito o motivo. Foi o melhor pode pensar. Era exótico.

- Thyrza, você está me dando férias num hotel e uma desculpa plausível o suficiente para voltar para casa se tudo der errado. Um tempo para eu me recompor e voltar de um jeito que não assuste minha filha.

- Mas você tem que concordar com o plano. Tudo tem que ficar público. Se você pegar o trem, sua vida vai mudar radicalmente.

- Minha filha e meus livros. É isso que eu posso perder se voltar agora para casa?

- Sua liberdade também, em algum momento.

- Sabe, Thyrza, isso tudo é muito confuso e mal ajambrado, mas eu tenho dinheiro para me virar em Harrogate. Das coisas que você disse, apenas uma é certamente verdade: eu preciso de um tempo para me acalmar. Então, eu vou dar um passeio de trem. Não te prometo que vou chegar até lá. Não te prometo nem que não vou ligar para casa na próxima parada.

- É justo. Mas se você for para Harrogate, não esqueça da sua reserva e das suas roupas. Você não tem ideia do quanto isso me custou.

- Bom, Thyrza, o trem está para chegar. Nós nos separamos aqui. Como fazemos isso? Apertamos as mãos?

- Sim. — Eliza estendeu a mão e sentiu o aperto firme da escritora — Agatha, eu vou ficar aqui e comer isso aqui. Não convém desperdiçar comida. Ah, tem blocos na mala. Aproveite para escrever entre um tratamento hidropático e outro. As pessoas vão querer mais livros seus.

A autora partiu sem olhar para trás. Eliza passou o tempo vagando de cidade em cidade. Fazendo ligações, indo a jornais, puxando conversa com pessoas nas ruas sobre o desaparecimento da escritora. Ficava em hotéis baratos para concentrar seus gastos em refeições elaboradas. Jamais imaginou que a comida era tão gostosa no passado. Todas as manhãs acordava sobressaltada, com medo de Agatha ter desistido. Não foi o caso. Em 14 de dezembro, a viajante fez sua última ligação para a polícia. Dando informações bem claras sobre o paradeiro da autora. Depois, voltou para as margens do Silent Pool e fechou os olhos.

Quando suas pálpebras se ergueram, estava novamente em casa. No Instituto. Por uma fração de segundo, pensou em todas as privações que enfrentaria dali para frente. Teria valido a pena? Quase ao mesmo tempo, sentiu a presença da Conselheira. A mulher estava estranhamente satisfeita. Tinha até um sorriso nos lábios.

- Ora, ora, Eliza Grey! De volta para o futuro!

- Conselheira Faulhaber.

- Não, não se levante! Não depressa assim. Você pode passar mal — disse a senhora, enquanto ajudava Eliza a se apoiar melhor, um gesto de consideração que assustou muito a viajante. — Então a sua tese era de que o mundo só muda quando instigamos os maus sentimentos da humanidade. Você ia tornar Agatha famosa pela exposição de um drama pessoal. Afinal, as pessoas só agem movidas por baixos instintos, como fazer fofocas, se comprazer com o sofrimento alheio.

- É…

- Pois bem. — A conselheira sacudiu um papel bem diante dos olhos de Eliza — Sua missão foi um sucesso! Nunca o tecido temporal foi tão alterado antes!

- Eu… Eu não…

- Não se preocupe, vai levar alguns dias para o seu cérebro se ajustar à nova consciência coletiva. Mas eu achei que você ia querer ver isso o mais depressa possível. — A mulher estendeu o papel para Eliza.

Era uma lista, uma lista de títulos. Os olhos da viajante se acenderam. Agatha Christie publicou até 1979. Em alguns anos, havia várias publicações.

- Você acertou, Eliza. Você mudou a história de fato. Agatha Christie é a escritora mais vendida de todos os tempos. Bom, ela só perde para a Bíblia. Não dá para competir com Deus.

Eliza se deu ao luxo de sorrir — isso ainda era algo que todo ser humano podia fazer. Tinha renunciado a quase tudo, mas o prêmio estava bem na sua frente: um futuro com milhares e milhares de páginas de Agatha Christie para ler. Afinal, não havia aberto mão do seu direito ao conhecimento.

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Eveline Santos
Coletivo Metanoia

Ainda em busca da frase de impacto ideal para convencer as pessoas de que sou relevante e mereço ser amada.