Pulseira

Rene Spoladore
Coletivo Metanoia
Published in
8 min readApr 13, 2021
Foto por Nadin Mario

- Cherry, sou eu. É hora de acordar. Cherry, nós temos que ir.

Cherry acordou devagar. A realidade invadindo sua mente como uma onda que quebra na praia e cobre a areia e lentamente volta ao mar. A visão turva lhe mostrou um vulto próximo ao seu rosto.

- Eu não quero ir — sua voz era pastosa, ainda sob efeito da droga, mas a pior parte era a dor de cabeça.

- Vam’bora, veste alguma coisa e vamos. Eu pago o café.

Ele estava de pé, parado em frente a porta e esperava por ela. Parecia impaciente, olhando a forma lenta com a qual ela fazia as coisas. Cherry parecia perdida, andava de uma lado para o outro, com o torso nu e a calça com o zíper aberto. Ela mexeu em algumas roupas espalhadas no chão e pegou uma camiseta que teve suas mangas arrancadas, então calçou um par de tênis surrado e foi até ele.

- Pronto, seu chato.

- Toma — ele entregou uma jaqueta para ela — Tá frio lá fora e acho que tá chovendo também.

- É, que pena — Cherry pegou a jaqueta e jogou-a no chão — Vamos, cê não tava com pressa?

A garoa fina cobria a cidade, fazendo-a parecer com um espelho. O ar era gelado, mas Cherry não se importava de ter os braços expostos ao frio, a sensação era boa, ajudava com a ressaca da droga. Conseguia pensar com um pouco mais de clareza, não muita.

- Você devia ter pego a jaqueta.

- Merh.

Aquela expressão foi expelida de forma tão vazia que nem mesmo Cherry acreditou na indiferença que tentou imprimir. Merh, pensou sobre não ter conseguido o efeito que queria.

- Eu devia ter pego minha pulseira. Nunca saio sem ela.

- No que ela ia te ajudar com o frio que tá fazendo?

- Sei lá, eu sempre ando com ela, desde — parou de andar e pensou. Antes que pudesse dizer há quanto tempo usava aquela pulseira, Cherry olhou para a vitrine de uma loja de roupas caras e apoiou a mão no vidro, imprimindo a palma de sua mão na superfície limpa — Tá vendo isso?

- O que tem?

- Esse mundo é doente, quem pagaria 800 dólares na merda de um chapéu?

- Sei lá, as pessoas gostam de jogar na cara dos outros o monte de merda que elas compram, como se fosse uma competição de futilidade.

- Não vejo o menor sentido nisso.

- Sabe o que não faz muito sentido? Você.

- Quê que cê quer dizer com isso?

- É que tu sempre tá de boa, sabe? Sempre tá andando por aí de bobeira. Quero dizer, eu nem sei com o que tu trabalha, saca? Mas você sempre tá fazendo alguma coisa com outras pessoas. Não trabalha e sempre tem dinheiro, é isso que eu quero dizer — ele quase gritou com indignação.

- É, só que hoje não vou fazer nada.

- Como assim? Tamo indo tomar café.

- É, mas é café — Cherry gesticulou com impaciência, como se fosse óbvio que sair para tomar café não era o clímax do seu dia.

- Me desculpa, majestade — ele tocou o ombro nu de Cherry e então voltaram a caminhar.

Ela olhou pela última vez para a vitrine e bufou. Cherry sentiu algo diferente na cidade e pensou nas pessoas que passavam por eles. Por que isso não parece fazer sentido? Afinal, por que ir para algum lugar se uma hora vamos embora? Talvez seja esse clima de merda nesta cidade de merda, faz as pessoas irem em frente sem pensar muito. Ficou orgulhosa com o pensamento e sorriu, mas o sorriso logo desapareceu quando lembrou da pulseira.

- Hpfm… Eu devia ter pego minha pulseira.

Sua mão esfregou o pulso vazio. Realmente sentia falta daquela bijuteria barata. Sempre andava com aquela pulseira, era seu amuleto.

- Se você sempre anda com ela, por que esqueceu dela hoje?

- Você ficou me apressando.

- Eu te chamei. Você que se apressou a toa. O que a pulseira tem de tão especial?

- Acho que me dá sorte. Coisas legais sempre aconteceram quando eu tava com ela.

- Bom, se você sempre tá com ela, pode-se dizer que essa pulseira atrai coisas ruins também.

Cherry ficou sem uma resposta e deixou transparecer a irritação que sentia.

- Por que você não cala a boca?

- Por que você não deixa de ser tão supersticiosa?

- Não é superstição — mentiu — Eu só gosto da pulseira, tá?

- Tá, então pensa comigo. Se eu seguir sua lógica, posso dizer que meu celular me traz sorte — ele sacudiu o aparelho em frente ao rosto de Cherry.

- Ah, isso eu posso te garantir que é mentira.

- É mesmo?

- É mesmo.

Um carro passou zunindo pelo casal, ficaram estáticos com o susto provocado pelo barulho do motor rugindo. Que pressa é essa? Cherry disse a si mesma. As pessoas sempre estão com pressa para ir a um lugar mesmo sabendo que vão embora de lá. Cherry o empurrou pelas costas para que continuasse andando. A cafeteria não estava tão longe dali e ela estava ficando com fome.

- Olha para todo mundo — ela disse, apontando para o outro lado da rua, onde um rapaz andava com a cara colada em um celular — Me diz se aquele cara tem sorte? Aposto que ele só sabe fazer isso, olhar para essa telinha e ficar batendo o dedo em coraçõezinhos para mostrar que a felicidade artificial das outras pessoas é importante.

- Isso não faz o menor sentido, você sabe né?

- O que eu quero dizer é que celulares não fazem ninguém ter sorte. Esse treco só faz você se distanciar do mundo e é no mundo que existe a sorte, não nesse aparelho.

- Eu juro que não sei se você tá falando sério — ele deu uma risadinha.

- A sorte só vem para quem consegue olhar cinco centímetros acima dessa tela e isso é sério.

- E o que faz sua pulseira ser melhor que meu celular?

- Eu não fico olhando para ela 24 horas por dia.

Eles ficaram em silêncio por um tempo. Deixaram a cidade falar por um momento; os sons da natureza. Sons artificiais de uma natureza artificial. Cherry achou engraçado como as coisas estavam desbotadas. Sentiu a melancolia que a cidade vomitava em cima de cada uma das pessoas que passavam por eles. Era triste.

- Chegamos, é aqui — disse baixinho, como se tentasse quebrar o silêncio de forma gentil.

- Já pensou se as coisas que aconteceram comigo só aconteceram porque eu tava com a pulseira?

- Bom, é uma forma de ver a coisa toda — ele abriu a porta da cafeteria, fazendo soar o sininho pendurado acima de suas cabeças.

As sete pessoas que estavam lá dentro nem ao menos se deram o trabalho de virar os olhos em direção à eles. Cherry sentiu a melancolia ali dentro também. Mas ao menos o cheiro era melhor. Pão recém assado, café fumegante escorrendo para dentro de canecas e o ar quente que parecia abraçar seu peito.

- É, acho que lá fora tá frio mesmo — disse com um risinho ao se sentir abraçada pelo calor da cafeteria.

- Você é bem boba mesmo.

Eles sentaram-se próximos à janela e uma moça jovem, com o cabelo preso em um coque elaborado, se aproximou com um bloquinho de papel em uma mão e uma jarra de café na outra. A garçonete encheu as duas canecas e anotou o pedido. Uma fatia de pão e ovos mexidos para ele. Cherry não queria nada que estava sendo servido ali, mas decidiu pedir panquecas.

- As coisas não são tão simples como você pensa.

- Ah é? Como são então?

- Bom, hoje não aconteceu nada ainda.

- E?

- E eu estou sem a pulseira.

- Não, não aconteceu nada, porque você se drogou a noite toda e deve estar bem zoada agora.

- Bom, ontem coisas aconteceram. Hoje não estou sentindo nem um pingo da diversão de ontem — Cherry apontou para o pulso nu.

- Por que as pessoas fazem isso?

- O que? Se drogar?

- Não, por que as pessoas dão um significado tão grande para coisas idiotas, tipo aquela bijuteria vagabunda que tu tem?

- Sei lá — Cherry coçou a cabeça e bebeu o café de uma vez. Fez uma careta ao queimar a língua — Por que algumas pessoas, como você, não conseguem ver as coisas além do óbvio?

- Sei lá.

Silêncio.

Aquele silêncio estava ficando estranho. Não estranho ruim, era estranho confortável e bom, como ver alguém andando de pijamas na rua. Confortável, bom para a pessoa e estranho para quem vê essa pessoa. Quando a comida chegou, as coisas voltaram ao normal, apenas o silêncio de quem não quer falar de boca cheia, mas eles falaram mesmo assim.

- Sabe, acho que vai da mente da pessoa — Cherry disse de repente, deixando um pedaço da panqueca mastigada pular de sua boca. Aquilo era como um pensamento que precisava ser externalizado sem importar se estava de boca cheia ou não — Você tá bem chato hoje, vai ver que é por isso que não acredita no poder da minha pulseira — Cherry parou por um segundo e continuou — Ou vai ver você tá chato, porque eu estou sem minha pulseira e nada de legal vai rolar hoje.

- Acho que isso vai depender de você e não da pulseira.

- Acho que isso vai depender da pulseira sim. Eu sempre estou com ela.

- Só que você não tá com ela agora.

- Poxa, como eu queria estar com minha pulseira.

- O que você acha que iria acontecer se tu estivesse com ela?

- Alguma coisa legal.

- Você não sabe responder, né?

- Sei lá cara — Cherry estava irritada — Sei lá, eu ia tá com alguém mais legal, comendo em um lugar mais legal.

- Então acho que não vai rolar nada mesmo, né não? — ele não se chateou com o comentário. Ele sabia que Cherry tinha seus momentos.

- É, acho que não vai rolar nada mesmo.

Cherry olhou a cidade através da janela e deu mais uma garfada na pilha de panquecas. Mesmo ali dentro, protegida pelas paredes da cafeteria, ela conseguia sentir a tristeza de uma dia de garoa invadindo o lugar. Era estranha a forma como um dia de garoa parecia pior que um dia de chuva. Droga de pulseira, pensou. Droga de mim, que esqueci a pulseira.

- A garoa é como uma tristeza suspensa ao nosso redor, uma tristeza que não consegue ir embora.

- Do que cê tá falando?

- Se, pelo menos, tivesse chovendo.

- Cê ainda tá viajando?

- A chuva leva a tristeza embora de uma vez. É algo passageiro.

- Tu tá me deprimindo um pouco com esse papo. Acho que se depender de você, definitivamente não vai rolar nada hoje.

- É, não vai rolar nada hoje — repetiu o que ele disse. Cherry bebeu da caneca de café e sorriu mesmo sem a pulseira e então olhou nos olhos dele e tocou sua mão repousada na caneca.

Talvez algo acontecesse.

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