Realidade solitária

Rene Spoladore
Coletivo Metanoia
Published in
3 min readOct 21, 2020
Foto de cottonbro

Ela estava certa, no fim estava só. Não havia ninguém ali. Ninguém em quem pudesse confiar de verdade. Ela só conseguia enxergar um bando de trapaceiros, cobras e raposas com duas caras, prontos para dar o bote e atacar suas vítimas, mas ao invés de presas eles usavam suas mentiras e a isca era uma boa conversa regada a álcool e falsas risadas.

Ela os observa e era estranho. Não era como se estivessem ali de fato. Quer dizer, eles estavam e até interagiam, mas durava pouco. As coisas nunca pareceram tão certas e tão perfeitas, mas era tudo uma ilusão. Era certo, porque eles queriam que fosse, eles precisavam que fosse. Era perfeito, porque eles posavam para que tudo fosse perfeito, para que os outros pudessem enxergar a perfeição de algo extremamente artificial. Uma vida regada a uma falsidade alegre. E no fim, qual era o motivo disso tudo? Ela não sabia dizer. Olhava com asco para aquelas pessoas. Talvez estivesse presa em uma vida deprimente, mas pensar isso lhe parecia errado. Ela não estava presa. Ela estava livre. E sua vida não era deprimente, era mais real. Mais tangível.

Mas, as cobras e raposas, eles não estavam livres. Se viam dentro daquela ilusão construída com uma trapaça que se tornou um estilo de vida. A vida moldada por aquelas mentiras. Olá, tudo bem? Estou bem, obrigada! Humpf, mais uma mentira, talvez a mentira mais contada durante toda a história do mundo. Nunca ninguém estava bem, as pessoas eram apenas mentirosas. Se perdiam em suas fantasias até chegar em um ponto sem volta. Era como areia movediça.

Ela nunca entendeu isso. Talvez por isso se sentisse tão solitária. Ela enxergava uma verdade quando a via, mesmo disfarçada de mentira. Seus olhos se acostumaram a ver por trás da máscara. Ao passar muito tempo no escuro, você consegue enxergar até mesmo no breu. Aquelas pessoas ao seu redor, falsos e estranhos. Pessoas que ela conhecia a vida toda e ainda assim meros estranhos. Ela estava sozinha, tinha certeza. Estava sozinha mesmo ali, sentada a mesa de um bar com oito amigos. Todos ilhados em suas mentes e buscando o seu melhor ângulo para uma foto. Um verdadeiro exercício de futilidade, uma ode ao narcisismo. Fotos perfeitas de uma mentira contada há séculos. Tudo bem? Sim, estou bem. Até mesmo essa frivolidade a deixava enjoada.

No fim ela apenas se deixou levar. Vestiu sua máscara para esconder a solidão de quem está livre das próprias mentiras. Ela se deixou levar, mas não fez parte de todo o espetáculo. Ela riu das histórias e das piadas, posou para as fotos, mas não se exibiu para um círculo de amigos digitais que valiam muito mais do que os de verdade. Sua vida era um livro fechado e essa era a maior de todas as solidões. Ela estava livre para andar em um mundo onde não eram necessárias curtidas ou compartilhamentos.

Era solitário ser a única pessoa sem um celular nas mãos.

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