São Longuinho

Eveline Santos
Coletivo Metanoia
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3 min readMay 18, 2021
Foto: Tima Miroshnichenko

A barriga doía. O almoço já estava longe e eles seguiam na luta por muito tempo depois de anoitecer. Mas ela sabia que ninguém ia comer enquanto as chaves ou caneta — ou o que quer que fosse — não aparecesse. A mãe, aturtida, revirava os armários da cozinha. Gabriela remexia no lixo. Ouvia o estalo da mão do pai nas pernas do irmão. Ele era novo demais para entender a importância de estar sempre com a pele coberta. O tecido das calças, das mangas compridas, amortecia as pancadas.
- Não chora, não, que você é homem! Se chorar de novo vai apanhar mais! — o pai soltava cuspe da boca enquanto gritava, possesso.
Gabriela não chorava — só pelo prazer de contrariar. Ela era menina, devia ser fraca e chorar. Mas engolia cada lágrima. Já sabia que, em algum momento, o pai iria espancá-la também. Seu único gosto era saber que apanhava sem “motivo”. A mãe, com seus soluços e tremores, sempre derrubava alguma coisa e entrava no tapa. O irmão não entendia como se comportar no meio daquilo. As vezes era o choro, as vezes era um lamento de cansaço… tanto fazia, também levava os bofetões e chutes.

Pelo menos uma vez por semana era assim. O pai perdia alguma coisa e tudo ao redor parava. Sem água ou comida, sem descanso. Quando virava o alvo, Gabriela deixava o corpo bem mole e se jogava no chão. O pai ficava vermelho e suado, tentando acertá-la.
Então, quando tudo parecia perdido, a mãe puxava ela e o irmão para orar diante da imagem de São Longuinho. Prometiam dar três pulinhos se o Santo ajudasse a encontrar o item desaparecido. E o fato é que depois da reza, o objeto sempre era encontrado. O pai se acalmava, abraçava os filhos, as vezes até encomendava uma pizza… Gabriela aceitava o que lhe colocassem no prato e fazia de conta que tudo estava bem. No final das contas, era ela quem apanhava menos.
Achava a mãe meio burra por só rezar depois que o caos já estava instalado. Por isso, começou a orar para o velhinho de lanterna na mão todos os dias. Os sumiços, contudo, foram ficando cada vez mais frequentes e, com eles, as surras. Foi se tomando de ódio pelo santo que não protegia direito seus devotos, mas não conseguia se desapegar da imagem. Levou a pequena estátua para pensão em que morou durante a faculdade, a colocou em posição de destaque no seu primeiro apartamento e passou a mantê-la bem iluminada e lustrada num altar da casa em que morava com o marido e os filhos.
Quando o pai chegou de mala e cuia, com os cabelos já totalmente brancos e uma lista de remédios e recomendações, Gabriela não reconheceu aquele sujeito de voz suave, sempre tão prestativo, tão manso e bondoso com as crianças. Seu irmão tinha a explicação na ponta da língua:
- Era a doença desde aquela época. Ele não é mau, ele só estava com medo. Batia na gente por desespero.
Podia ser verdade, mas ainda assim Gabriela fez questão de manter o portão sem trinco. Sabia que, mais dia menos dia, o velho ia sair de casa, se perder e só seria encontrado cinco dias depois, morto por desidratação em algum terreno baldio. Pelo menos era o que sonhava. Para garantir o sucesso do plano, tirou o São Longuinho da prateleira e partiu a imagem em mil pedaços com um martelo de carne. Amigo como era do seu pai, o Santo bem que podia trazê-lo de volta em segurança e isso ela não iria admitir.

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Eveline Santos
Coletivo Metanoia

Ainda em busca da frase de impacto ideal para convencer as pessoas de que sou relevante e mereço ser amada.