Uma flor roxa

Suzane Morais
Coletivo Metanoia
Published in
7 min readNov 16, 2020

Ou a última vez em que vi Thereza

– Oi, Thereza, é você?

– Desculpa. O que disse?

– Sou eu, Roberta. Quanto tempo!

– Caramba! Roberta, como você tá?

Analisei o seu rosto por alguns segundos, seguidos de um breve abraço que ela me deu. Thereza não havia mudado nada desde a época da escola e era exatamente como eu me lembrava: olhos castanhos e muito vivos, nariz pequeno, boca inquieta e bochechas rosadas. Talvez estivesse com calor, porque realmente era um dia quente e o lugar estava cheio e ruidoso. Eu estava sentada bem atrás dela e a reconheci pelo rabo de cavalo bagunçado, igualzinho ao que ela fazia no colégio. Ela dizia que tinha preguiça de ajeitar e eu falava que ela só dizia isso, porque tinha o cabelo lindo e não precisava ajeitar nada. Mas não importava mesmo que estivesse desarrumado, porque isso era justamente o que dava todo o charme. Os fios cheios e loiros pendiam graciosamente em alvoroço, formando ondas nas pontas como uma cascata de ouro líquido.

– Tô bem e você? O que anda fazendo?

– Eu vim aqui no banco ver se consigo abrir uma conta.

– Emprego novo?

– Não. Quem me dera.

– Oi?

O barulho aumentava. A proximidade com a hora do almoço fazia com que mais pessoas chegassem para resolver problemas no banco. Thereza, que já estava com a cabeça virada e o corpo torcido para poder me escutar, resolveu mudar logo de posição, voltando-se para trás.

– Eu disse quem dera! Tá um furdunço isso aqui hoje.

– Acho que é dia de pagamento.

– E essa fila que não anda?

Eu olhei para o lado e perguntei sobre a escola para ver se ela se lembrava:

– Pois é. A gente era unha e carne no colégio, né?

– É mesmo. Toda semana a gente dormia uma na casa da outra.

– E aprontava todas!

Nós duas sorrimos. Era como se tivéssemos onze anos de novo voltando da escola, falando sobre o que tinha acontecido no dia e rindo mesmo sem ter motivo. Ela me chamava de Rô e eu dizia: “Você tem cara de Tita”. Eu me sentia estranha, pensando: “Como é possível estar tão à vontade com uma pessoa que não vejo há tantos anos? ” E, ao mesmo tempo, eu falava de modo sobressaltado como se alguma palavra que eu dissesse, muito afoita ou mal colocada, pudesse fazer com que o encantamento daquele momento, de repente, acabasse. Era uma sensação morna e íntima, como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta pela primeira vez.

– Deixava os professores malucos, isso sim.

– Lembra que a gente dizia que ia viajar pro Canadá pra fazer intercâmbio?

– Nossa! Eu nem me lembrava mais disso.

– E depois a gente ia se casar e morar uma perto da outra.

– É verdade! E nossos filhos seriam criados juntos como melhores amigos, que nem a gente.

– Bons tempos.

– Bons tempos.

Deu-se uma pausa na conversa e o silêncio já começava a ficar constrangedor. Apertei as mãos debaixo da bolsa, ensaiando uma pergunta. Mas Tita me interrompeu:

– Esse banco é uma porcaria. Acho que vou fazer portabilidade.

– Faz sim, também estou pensando em fazer. Tudo tem que vir aqui na agência pra resolver.

– Não é, menina? Tempo perdido!

– Nem fala! Eu já corro o dia inteiro de um lado pro outro que nem doida pra tentar dar conta de tudo que tenho pra fazer.

– Eu, a mesma coisa. Tô sempre na correria, mas parece que nunca dá tempo de fazer nada.

– Pois é, ando tão estressada, preciso tirar um tempo pra mim.

– É mesmo, é importante a gente dar um tempo de vez em quando, espairecer um pouco.

– A gente bem que podia marcar alguma coisa, né?

– Podia mesmo. Cuidado com a fila.

A fila havia finalmente andado, depois de vários minutos de espera. Mas eu não havia percebido, não fosse o aviso de Tita para avançar e mudar de cadeira. Na verdade, queria que o tempo congelasse, me torturava a vontade de saber mais sobre ela, sobre o que ela pensava e sentia, os seus sonhos, a sua música preferida. Será que era a mesma que a minha? Quando éramos menores, tínhamos os mesmos gostos, usávamos as mesmas roupas e tínhamos até as mesmas manias. Ela era, para mim, mais que uma amiga, mais que uma irmã. Tinha tanto para descobrir em tão pouco tempo. Quem, afinal, criou essa escravidão do relógio? Quem inventou as horas? Quanta vida perdemos tentando ganhar tempo? Tomei, enfim, coragem e perguntei:

– Thereza, você acredita que eu guardei aquela florzinha até hoje?

– Que flor?

– Não lembra?

– Não…

Ela não lembrava. Olhei para baixo e me encolhi, pequena, com a vergonha à mostra. Meu coração era um pássaro aflito entre seus dedos. Com a voz rouca, eu disse:

– A gente estudava lá no Externato Santa Úrsula.

– Claro, disso eu lembro. A gente vivia grudada.

– Então, a professora contou pra minha mãe daquele dia no parque.

– Que dia?

– Aquele da flor roxa. Eu nunca tinha visto uma flor dessa cor antes.

– Ah, lembrei. Foi o passeio da sexta série para a Quinta da Boa Vista. A gente jogou duas pedrinhas no lago e prometeu que nunca ia se separar. Criança é tão inocente.

– Foi um dia maravilhoso.

– A parte que eu mais gostei foi ver a girafa.

Eu e Tita fazíamos tudo juntas, mas, ainda assim, éramos tão diferentes. Ela era divertida, inteligente, popular, e se expressava muito bem. Tinha opinião formada mesmo com pouca idade e, por isso, era sempre escolhida como representante de turma. Não importava o lugar onde íamos, ela era sempre o centro das atenções. Ela brilhava e estar ao seu lado me deixava feliz, como quando você fica na janela de manhãzinha e é aquecida pelos raios do sol. Já eu era muito tímida, introvertida, preferia não falar. E meu corpo já me incomodava nessa época. Eu usava as blusas com o dobro do meu tamanho, porque os meus seios estavam crescendo e chamando atenção, e eu odiava a sensação de ser olhada. Ir comprar pão de manhã era um suplício, porque os homens da praça falavam coisas horríveis para mim. Eu tinha onze anos e sentia como se eu estivesse errada por ter um corpo que começava a dar sinais de mulher.

Uma vez, fui ao mercado e, ao entrar na fila para pagar a compra, não percebi quando um velho deu um tapa na minha bunda. Eu tremi de raiva, por dentro, mas saí correndo com pernas constrangidas. Meu Deus, por quê? Cheguei na casa de Tita chorando. Ela me consolou dizendo que eu era especial, o mundo é que era uma droga. Disse que estava do meu lado para o que der e vier.

– Sabia que foi por causa desse dia da flor no passeio que eu tive que me mudar?

– Não sabia… mas por quê?

– No mesmo dia, minha mãe leu meu diário, sem eu saber.

– E o que ela disse?

– Nada, só chorou. Era muito religiosa.

– Por que você não me contou?

– Foi muito rápido. Não deu tempo.

– Eu chorei tanto depois que você foi embora. Fiquei magoada durante um bom tempo. Não queria sair e nem comer direito. Tentei te ligar, mas acho que seus pais trocaram o número de telefone. Na época não tinha internet, nem rede social, como hoje em dia. Depois, acabei mudando de escola e fiz novos amigos. Mas, engraçado, eu havia me esquecido totalmente desse dia do passeio.

– Eu nunca me esqueci. A gente tava brincando no jardim perto do lago lá na Quinta e você achou uma flor. Uma flor linda, e era roxa! Você pegou e me deu. Eu fiquei tão feliz que te dei um beijo. A professora viu, fez um escândalo, e separou a gente na mesma hora, porque foi na boca.

– Foi um absurdo isso que a sua mãe fez. Se fosse com a minha filha, eu agiria bem diferente.

– Você tem uma filha?

– Sim, olha a foto dela. É a cara do pai. Estamos juntos há cinco anos — disse Tita mostrando uma foto no celular.

Pensei em aproveitar o momento para trocar número de telefone ou rede social para combinarmos de sair, quem sabe reatar a amizade, mas, antes que pudesse perguntar qualquer coisa, uma voz nervosa e urgente exclamou do caixa de atendimento: — Próximo! Próximo! Próximo!

– Ih, Roberta, é a minha vez. Preciso ir, já chamaram três vezes o meu número e só reparei agora — falou Tita me abraçando rapidamente para se despedir, voltando-se apressada para a direção do balcão.

– Vai lá. Gostei muito de te ver.

– Também amei te ver. Chamaram rápido até.

– Pois é, o tempo passou e a gente nem viu.

– Bom te ver mesmo. Tchau.

– Tchau.

Tita correu até o guichê para ser atendida, enquanto eu me encaminhei para ir falar com o gerente, afinal ainda faltavam vários números para ser a minha vez. Ao chegar no pé da escada, porém, eu me virei e gritei uma última pergunta:

– Ah, Thereza, você não me falou o nome da sua filha?

Ela ouviu e se virou com um sorriso que iluminava o seu rosto, dizendo com voz reforçada:

– É Violeta!

Nós nos olhamos por alguns segundos eternos até que o atendente a chamou com insistência: “Senhora? Senhora? Senhora? ” Ela mergulhou a cabeça no vidro e eu subi os degraus para nunca mais voltar.

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