Chiaroscuro à la ferme
Coluna “Matilha Andaluza”, por Lucas Souza
Tom Na Fazenda (2013), do Xavier Dolan — já apresentado na semana passada — difere dos outros filmes da filmografia do diretor por nos apresentar um cinema mais psicológico, sombrio, denso e modelado nas entrelinhas.
O filme em questão narra a estadia de Tom (novamente interpretado por Dolan, em uma atuação brilhante, aliás, mas falaremos disso mais para frente) na fazenda da família de seu companheiro morto recentemente. Tom vai à fazenda para o enterro de seu companheiro, sendo que há uma problemática nisso: a mãe dele, Agathe, não sabia que o filho era gay e seu irmão, Francis, resolve que a mãe nem saberá desse dado e faz de tudo para que Tom não revele que era o ex-de seu irmão para sua mãe. Esse é o mote inicial do filme.
Mesmo diferindo esteticamente de seus filmes anteriores, que continham uma relação com o kitsch e com o vintage (menção aqui a Amores Imaginários), Dolan ainda apresenta a estranheza peculiar de seus temas — só que nesse título envolvido pelas brumas da soturnidade de uma fazenda interiorana, uma mãe e sua fragilidade evidente (ou força não aparente?) e uma homofobia velada em sentimentalismos de um cunhado correspondendo a todos os estereótipos da masculinidade ocidental, em certo momento do filme o personagem em questão, Francis, nos afirma e nos quer provar isso: ele é o macho alfa.
Quero evidenciar aqui a ligação de Tom e Francis com o claro e o escuro recuperado na estética barroca, o chiaroscuro. A relação dos dois é bem contraditória. Francis força Tom ficar naquela fazenda, fazendo-o mentir que ele é somente um amigo de Guillaume para sua mãe.Inserindo-o em um jogo psicológico e fazendo-o jogar com ele, criando amarras, laços e diálogos. Mas na medida que o amedronta com ameaças e pancadas Francis o ensina a vida da fazenda, o faz seu companheiro de bebida, seu confidente: uma espécie de amante, se interpretamos nas entrelinhas. A memorável cena da aproximação de Francis e Tom é filmada em uma espécie de chiaroscuro. Tom quer que Francis o machuque mais, ele pede porque é isso que Francis quer, no fundo. Quer ser a escuridão que apaga a luz daquele garoto que tem uma vida para seguir, quer ser o homem que dança com ele, mas que também o que o insulta. Existem traços de masoquismo na relação em alguns momentos, bem poucos, mas eles estão lá sim. Francis quer algo de Tom, mas talvez nem saiba o que: e na cena final do filme esse pedido fica evidente.
Por detrás das ações de Francis vemos o espelho de nossa sociedade patriarcal, de nossa criação moldada pela visão limitada de mundo e pelo ódio como defesa. Porém em Francis vemos um amor por detrás daquela vida que ele não teve. Francis enxerga na figura de Tom, um ser para ele desprezível e menor, o escape daquela fazenda que ele nunca ousou sair; a libertação daquela mãe que nunca o deixou ser quem ele era. A masculinidade de Francis é reafirmada por sua truculência com Tom e com sua maneira de tratar as mulheres, ele precisa sempre estar por cima para se autoafirmar, é ele sempre quem manda.
Volto aqui ao chiaroscuro do barroco para abordar questões das pinturas de Caravaggio, funcionando como uma espécie de teatralidade da cena, até porque o filme em si fora adaptação de uma peça teatral homônima de Michel Marc Bouchard, “Tom à la ferme”. Nos momentos em que luz e sombra se fazem componentes fílmicos vemos a questão teatral em voga, como na cena da dança dos dois, com os feixes de luz perpassando as janelas do galpão vazio e invadindo-as.
A cena do tango é uma das que vem evidenciar a tensão sexual entre Tom e Francis. O erotismo e a violência apresentam-se como o claro e o escuro ideal na dança que eles compartilham. É intrigante e agoniante ver como a relação dos dois cresce, ver como Tom começa, de fato, a partilhar daquele jogo intrigante de gato e rato em uma espécia de Síndrome de Estocolmo; quando as trevas perseguem a luz e etc: uma evocação ao chiaroscuro, a tensão como normalidade apresentada nas obras de Caravaggio podem se ver refletidas de alguma maneira aqui.
Uma coisa não podemos desvencilhar dessa quarta obra do Xavier Dolan e de sua primeira: a construção de sua própria personagem. Tanto Tom quanto Hubert são personagens viscerais a suas causas e mundos. O primeiro apresenta uma fragilidade inerente ao seu ser, enquanto o segundo urra aos quatro cantos o que quer e o que não quer. São construções diferentes para filmes de tonalidades diferentes, mas são obras do mesmo cinema: da realidade do mundo do Dolan. Do machismo e da coerção, do exercício de poder familiar ou físico — é o cinema que Xavier Dolan que nos brinda, seja para a construção de metáforas com arte barroca ou peças de arte de gosto duvidoso, com sua imagética que valoriza, antes de tudo, as relações dos atores sociais.