“Daisies”

Quem escolheria uma margarida em um jardim de rosas?

Anna Lua Castro
Coletivo Paralaxe
Published in
4 min readNov 20, 2014

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Coluna “O Feitiço da Ninfa”, por Anna Lua Castro

Poster de “Daisies”, Vera Chytilová

As engrenagens trabalham incansavelmente. O ambiente é pesado, caótico, opressor e o mundo vai mal, muito mal. Por que as margaridas haveriam de aceitar algo do que ele ditasse ser bom ou mau? Estavam elas, também, oprimidas, desamparadas e infelizes. A partir dali, seriam tão más quanto desejassem ser, gostasse o mundo ou não.

Vera Chytilová realizou um marco atemporal no cinema surrealista com As Pequenas Margaridas (1966). Utilizando-se técnicas visuais extremamente inovadoras (hora a tela é uma explosão technicolor, hora apaga-se, monocromática) e um argumento perigosamente político caricaturado numa estética vanguardista ou, mais especificamente, feminina (o filme chegou a ser censurado na Tchecoslováquia na década de 60 pela crítica ao sistema socialista), As Pequenas Margaridas desdobra-se num protesto não somente feminista, mas ao amadurecer do indivíduo em si.

Ao desprenderem-se dos dogmas a elas impostos, as margaridas decidem viver a vida de maneira inusual e repreensível, aproveitando-se de homens mais velhos, causando discórdia em restaurantes e bares, fazendo pouco dos sentimentos alheios. As margaridas riem-se de tudo e todos, e essa é a primeira fase da película: elas se sentem livres, o mundo lhes pertence, suas ações lhes levam exatamente onde querem ir. Esta é a fase da imaturidade ou o florescer da juventude, representada no filme pelas maçãs verdes que as duas moças estão constantemente mastigando, atirando pelos ares, as maçãs sempre presentes em algum lugar do cenário no primeiro momento do longa.

Após uma série de encontros em restaurantes e fugas em estações de trem, as margaridas sentem-se entediadas — não há nada novo acontecendo. É tempo de melancolia. Partem em busca de aventuras e sentem-se invisíveis. As pessoas na rua não as veem. Teriam deixado de existir? Sua depravação teria apagado seu lugar social? As margaridas abrem uma série de questionamentos existencialistas que as levam a descobrir que, neste mundo que vai mal, existir não combina com liberdade, existência é um estado de privação. Este é o adolescer das pequenas margaridas.

Marie e Marie partem em uma última jornada. Alongam a maquiagem e acendem seus cigarros: são mulheres feitas. Deparam-se com um enorme banquete, decorado aos mínimos detalhes, e ali o caos reina para as duas margaridas. Tentam banquetear-se de maneira mais censurável possível. É o banquete repudiando a etiqueta social imposta às mulheres diariamente, aos encontros opressores que lhes eram costumeiros, à delicadeza feminina obrigatória. A euforia da liberdade, somada à maturidade ainda em botão das margaridas fazem-nas perder o controle das suas ações. As garotas veem-se afogadas em seu próprio caos. Desamparadas, buscam apoio na sociedade da qual se desprenderam, para descobrir que seu sua imagem ali fora corrompida — reparos seriam necessários. Porém, assim como o esplêndido banquete das opressões fora arruinado pelas margaridas, sua imagem jamais voltaria a ser a mesma. A resposta do social ante uma reintegração das garotas no meio seria de repúdio, como deixa claro a brilhante cena final com o lustre de cristal.

As Margaridas e o Amor

Libertar-se é essencial. Amadurecer é essencial. Até que o mundo não se apegue a esses dois conceitos básicos, o homem continuará regredindo em sua existência limitada, oprimida, continuará explodindo bombas em busca de paz e crescendo em decadência até que só lhe reste o próprio caos irreparável como legado posterior.

Vera Chytilová, diretora.

Este texto é dedicado àqueles cuja fonte de indignação é um pouco confusa.

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Anna Lua Castro
Coletivo Paralaxe

A ânsia frenética de retirar-se ao silêncio do somente sentir em um mar de palavras. Uma náufraga numa ilha de sonhos esquecidos tentando (em vão?) decifrá-los.