Escravos e escravos

Raphael Carneiro
Coletivo Selo Povo
Published in
10 min readSep 9, 2016

- Somos negros sim, mas não somos inferiores!

A revolta do filho em relação à submissão da família ao Barão de Monte Santo era inaceitável para Sebastião. Se eles tivessem uma vida igual à dos outros escravos, tudo bem. Mas, desde que foi acolhido pelo pai do Barão, tinha seu próprio quarto na Casa Grande, um dia livre na semana e a mesma regalia para filho, nora e netos.

- Meu filho, você reclama de quê em sua vida?

- Somos escravos!

- Escravos são os outros.

- Qual a diferença deles para nós?

Para Sebastião, as ideias do filho foram implantadas pelos outros escravos da Fazenda. O pai sempre se mostrou relutante à proximidade do filho com os serviçais. Sabia que o conforto era invejado e, algumas vezes, precisou usar da capoeira — aprendida a contragosto do pai do Barão — para se safar de uma briga. Foi assim quando, naquele mesmo dia, os escravos o chamaram para a Senzala e anunciaram uma rebelião. Iriam queimar toda a produção se não fossem libertados. Quando ouviu a proposta, pensou em correr dali, mas não havia como. Seus companheiros de escravidão o cercaram. Apanhou, sangrou, mas usou da ginga para se desvencilhar.

As tochas já iluminavam a proximidades da Casa Grande quando Sebastião se aproximou da entrada. A poucos metros da porta lateral, distinguiu a silhueta do filho com os braços cruzados. A notícia da rebelião se espalhou rápido. Assim como o ataque sofrido.

- O que te fizeram?

- Uma covardia. Foi isso que fizeram.

- Covardia é o que eles sofrem todo dia.

- Chego em casa nesse estado e você ainda defende aqueles miseráveis?

- Não é defesa, é a realidade. Vamos entrar parar cuidar disso aí.

A noite foi mais longa do que Sebastião poderia imaginar. Acordado em seu escritório, o Barão de Monte Santo recebeu, durante toda a noite, visitas ilustres da cidade, entre elas o prefeito e o delegado. O escravo ouviu parte da movimentação de seu quarto enquanto tentava demover o filho da ideia de se juntar aos revoltosos. Conseguiu mantê-lo por perto enquanto esteve acordado, mas bastou ser vencido pelo cansaço para não perceber a debandada. As horas seguintes foram de incertezas e de poucas notícias. Tremeu de medo quando a nora, mãe de seus dois netos, entrou no quarto aos prantos.

- Pegaram ele! Pegaram ele! Pegaram ele!

- Calma, Rosário. Pegaram quem? Quem pegou quem?

- Seu filho, Seu Sebastião. Pegaram e não querem deixar sair.

- Eu disse para ele não sair de casa. Eu disse para não ir até lá — resmungou.

- Agora ele foi. Ele está lá. Falaram que se o senhor não se juntar, vão matar meu marido.

- Que maluquice é essa? O que meu filho tem a ver com essa história?

- Eles acham que o senhor não ajuda.

- Não posso trair o Barão. Não sou igual a eles. Devo minha vida ao Barão.

- O que vale mais: o Barão ou seu filho?

A pergunta paralisou Sebastião. Sempre que podia, fazia questão de expor sua gratidão à família do Barão. Mas sua família que estava em jogo. Como podia se preocupar mais em não magoar seu dono do que em salvar a vida do filho? A infância na Casa Grande, a substituição dos pais e a vida mais tranquila que a de outros negros lhe impediam de confrontar o Barão. Contudo, o apelo da nora o deixou abalado. Estava em um dilema e não sabia como sair. Recorreu ao dono. A conversa foi tensa. Sempre em posição de inferioridade, Sebastião não cogitou aderir ao movimento, mas ponderou o medo de perder o filho.

- Seja forte, Sebastião. É apenas uma ameaça.

- Será, senhor Barão? E se eles matarem mesmo?

- Não vão fazer isso. Acredite em mim. Querem me testar.

- O senhor vai negociar com eles?

- Não agora.

- Mas e meu filho?

- Ele ficará bem. Você mesmo não dizia que ele se sentia como os outros? Deixa ele um pouco lá para ver que é diferente.

A ideia não agradou. Sebastião era um homem de princípios e de grande gratidão. Mas a possibilidade de carregar consigo a culpa pela morte do filho o fez oferecer o corpo como moeda de troca. Não trairia suas convicções e, de quebra, seria livrado da culpa. A solução perfeita, pensou. Seria, se os outros escravos concordassem. Após três dias, iria fazer uma nova tentativa, mas foi chamado pelo Barão para acompanhá-lo em uma ronda. Obedeceu, como de costume. Seguiu seu dono logo atrás da carroça, montado em um velho jumento. No caminho, percebeu uma movimentação estranha no mato. Bateu com os pés descalços nas costelas protuberantes do animal para fazê-lo andar mais rápido. Quando emparelhou com a tenda da carroça, se jogou no chão e forçou a parada do grupo.

- O que houve? — perguntou o Barão, o primeiro a se aproximar.

- Eles estão na mata — disse tão baixo que ninguém ao redor ouviu.

- Sebastião está mal. Vamos ter que voltar — ordenou o Barão.

O escravo foi colocado deitado na carroça e um dos três jagunços que fazia a segurança do Barão montou o jumento. Com os olhos marejados, o senhor não parava de agradecer. Prometeu até lutar pela libertação do filho de Sebastião.

- Mas não é só isso. Você sempre foi uma pessoa leal e me colocou à frente de tudo. Nada mais justo do que agora eu lhe garantir a liberdade. Vá, Sebastião. Pode ir viver!

- O senhor não sabe o que está falando. Não fiz nada além da minha obrigação. Ficarei ao lado do senhor até o fim.

Na volta, Sebastião seguiu direto para a Senzala. Pelo caminho percebeu alguns olhares atravessados até ser recebido por um grupo de cinco negros. Com a fala tranquila e o olhar atento ao redor, explicou que queria ajudar na negociação. Convenceu os outros escravos a retornarem à vida normal em troca de um dia de folga por semana e o fim dos castigos físicos. Iria utilizar seu prestígio para convencer o Barão.

No caminho de volta para a Casa Grande sentiu as pernas tremerem. Passou pela nora, que brincava com os filhos, e, com um aceno, tratou de tranquilizá-la. Percebeu que ela queria dizer algo, mas a evitou. Entrou na casa e deu de cara com a esposa do Barão.

- Preciso falar com o Barão — adiantou.

- Ele está voltando da cidade. É urgente?

- Estive com os rebelados… — tentou falar, mas vou interrompido.

- Você é maluco, Sebastião? Para que se arriscar assim?

- Eles estão dispostos a acabar com tudo se tiverem um dia de folga e o fim dos castigos.

- Maravilha! O Barão vai gostar de saber disso.

Enquanto conversavam, ouviram uma voz crescente e raivosa vindo do lado de fora. Quando a porta da sala bateu tiveram a certeza: era o Barão.

- Essa mestiçagem sem coração acha que aqui é o quê? — sem resposta, o desabafo continuou — Acham que estão na Europa? Não sabem quantas família irão acabar?

- O que foi? — questionou a esposa de maneira subalterna.

- Uma princesinha quer liberar todos os escravos.

- É verdade, senhor? — perguntou Sebastião.

- Eu minto? É verdade sim. É mais verdade ainda que vocês vão me deixar sozinho agora. Saiam logo.

Sebastião saiu da Casa Grande desorientado. Viu a nora novamente. De novo fez um aceno de cabeço para evitar a conversa. Mas não foi suficiente. Ela o parou com um olhar ainda mais perdido que o seu. Nunca a tinha visto assim, logo ela tão calada, tão quieta. Olhava sempre para o chão, principalmente perto do Barão. Ele, aliás, sempre procurava saber dela. Sebastião nunca entendeu o motivo, o que não demorou para ser esclarecido: fora estuprada diversas vezes pelo senhor de engenho. Duvidou do que ouviu. A calou com um tapa forte no rosto. O Barão nos tem como uma família, gritou. Ela chorou, jurou contar a verdade e disse ter escondido tudo com medo da reação do marido.

Ainda mais desorientado, Sebastião retornou para a sede. Encontrou o Barão e revelou o que havia escutado. Como resposta, o Barão negou e, com uma voz mais irritada do que a que Sebastião estava acostumado a ouvir, voltou a dizer que ele era livre. E mais: ordenou que saísse e não voltasse jamais.

Poucos dias após a expulsão Sebastião recebeu a notícia do sumiço da nora e dos netos. Foi o que fez acreditar ainda mais no Barão. Só não esperava se esbarrar com a baronesa que, assim como ele, havia sido expulsa de casa.

- Ele é um monstro — gritou a baronesa.

- Aquela mentirosa também falou com a senhora?

- Ela não é mentirosa, Sebastião. Ele a estuprou mesmo. Sempre soube do que acontecia, mas não tinha forças para lutar.

- Ele é tão bom…

- Nunca foi bom. Ele é um monstro.

- Ele fez algo com a senhora?

A baronesa puxou uma manga do vestido e revelou o braço repleto de hematomas. A generosidade lhe escapou em segundos.

- Vou matar aquele desgraçado!

Mal terminou a frase, o escravo seguiu em disparada pelo mato. Com a raiva brilhando no olhar Sebastião tentou invadir a fazenda, mas foi contido pelos jagunços. Apanhou pela primeira vez na vida. Sentiu o gosto do sangue sem poder fazer nada. Quase desacordado, jogado no chão, foi puxado pela cabeça. Abriu os olhos e reconheceu a face do Barão bem próxima à sua.

- Você sempre foi bem burro, não é pretinho?

- Como o senhor…

- Cala a boca, seu imundo. Não suportava mais fazer cena com você. Tudo por causa de meu pai.

- O Barão sempre foi tão bom comigo.

- Você é um jumento mesmo. Imbecil. Nunca desconfiou de seu tratamento diferenciado? Você é burro. Disse a meu pai que não valia a pena ficar com você. Se matou os pais, tinha que matar o filho também. Nunca vi ficar com pena.

- Matou?

- É, idiota. Seu pais foram mortos por meu pai. E agora vou terminar o serviço. Posso te matar ou posso matar os outros escravos, junto com seu filho. O que prefere?

- Seu miserável. Vou matar você.

- Vamos logo, pretinho. Não tenho muito tempo.

- Me mate, desgraçado. Deixe meu filho fora disso.

- Alberto! — gritou o Barão voltando o corpo para o lado de fora — Pode atacar a Senzala. Se eles querem liberdade, lhes dê a morte!

- Meu filho não! Me leve para lá, me troque com meu filho. Deixe ele fora disso.

- É burro até na hora de morrer. Ô Alberto, leve esse preto daqui. Se os outros quiserem, deixe ele por lá e traga o filho. Lá vão matar ele mesmo e a gente não vai ter esse trabalho.

Passaram um pano molhado pelo corpo dele, limparam as manchas de sangue e lhe deram algo para beber. Recomposto, foi colocado em uma carroça para ser levado para a Senzala. Em determinado momento, um jagunço pediu para urinar no mato. A atenção em Sebastião não era grande. Ele aproveitou a distração, desceu deslizante pela carroça e se embrenhou no matagal. O sumiço não demorou a ser notado. Na corrida ouviu as ordens de tocar fogo nos revoltosos. O arrependimento foi imediato. Pensou logo no filho e em sua morte próxima. Passou a ser caçado por toda a cidade. Entre becos e vielas tentou se justificar com os outros negros. Revelou sua história e a decepção que sofreu com o assassinato dos pais. O fim da generosidade com a família do Barão fez com que outros escravos acreditassem em sua versão. Juntou cerca de 50 homens e planejou uma invasão à Casa Grande. Chegou a cercar o local, mas foi contido. Quando se preparava para colocar o plano em ação, viu a nora e os dois netos juntos ao Barão. Quis matar todos, mas foi convencido em ir primeiro à Senzala.

O cenário onde os revoltosos estavam era de devastação. Metade da construção havia sido tomada pelo fogo. Corpos espalhados pelo chão e um fedor insuportável. Pediu a Deus para que seu filho não tivesse sido vítima da carnificina. E não foi. Ele, na verdade, foi o primeiro a levantar voz contrária aos escravos quando estes já haviam cercado Sebastião e o ameaçado de morte. O antigo defensor do Barão havia aceitado a sentença sem nem questionar o julgamento. Ser assassinado por aqueles da mesma cor seria a redenção. Mas não foi assim. Aqueles que ele tanto rejeitou o acolheram e o perdoaram. Não teriam a mesma piedade com o Barão.

- Vou matar aquele filho da puta — esbravejou o filho ao saber dos estupros.

- Mas ela voltou para a sede. E com os meninos.

- Se ela voltou também merece morrer.

Sebastião teve que apressar o passo para conseguir acompanhar o filho e os outros escravos. Com tochas, facões e armas improvisadas, seguiram pelo mato escuro até se depararem com a casa iluminada em um só cômodo e completamente silenciada. Como conheciam bem o local, Sebastião e o filho foram os primeiros a entrar. Os primeiros, também, a perceber o sangue escorrer pelo azulejo português. Na sequência do líquido vermelho, o corpo do Barão com duas facas enfiadas na altura do peito. Ao lado dele, nua, a nora de Sebastião respirava com dificuldades.

- Ele mereceu. Agora vocês podem viver em paz — balbuciou antes de a faca em seu peito lhe tirar a vida.

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Raphael Carneiro
Coletivo Selo Povo

Escritor. Jornalista. Autor da biografia Edvaldo Bala Valério (http://bit.ly/1FsvoYV/) e de Uma chance: contos e outras histórias (http://amzn.to/2cdMTcS).