A HISTÓRIA POR TRÁS DO PROJETO N.354 DA NIKE

Robson Valichieri
Coletivo Sneakers
Published in
7 min readAug 29, 2022

Texto de Robson Valichieri

“N. 354”. Você já deve ter reparado nessa inscrição em alguns tênis da Nike.

N.354 representa um projeto especial da Nike, iniciado em 2019. Os arquivos da Nike, repletos de ideias, protótipos, inovações, buscas de soluções em design e performance servem agora como base para apontar novas intervenções em modelos da marca, desconstruindo e repaginando designs clássicos.

É possível sim imaginar que o projeto foi influenciado pelos trabalhos de desconstrução e experimentação de Virgil Abloh no projeto The Ten (2017), entre Nike e Off-White, que fez enorme sucesso e conquistou seu lugar na história da cultura dos tênis.

Desde então, a linha 354 já retrabalhou silhuetas como Air Force 1, Huarache, Daybreak e Zoom.

Mais recentemente, vem apresentando diferentes colorways dentro da linha chamada de Experimental, onde AF1s ganham um revestimento emborrachado que parecem embrulhar todo o cabedal.

Mas por que N. 354?

Pra entender a razão da Nike ter batizado o Projeto dessa forma, é preciso voltar no tempo — a uma manhã ensolarada em 20 de Junho de 1973, na cidade de Eugene, no estado norte-americano do Oregon. Mais precisamente, no Hayward Field, a pista de atletismo da Universidade de Oregon, onde acontecia uma prova de 1 Milha, com 1600m de distância — corrida principal do Hayward Field Restoration Meet, evento criado naquele ano para arrecadação de fundos para a reconstrução de parte das arquibancadas, em seu setor oeste.

No gramado interno da pista, Bill Bowerman, o treinador de atletismo da Universidade (e sócio-proprietário da então jovem Nike), observava seu atleta mais precioso travar uma batalha árdua contra o medalhista olímpico Dave Wottle.

Steve Prefontaine era o centro das atenções na pista. Pre, como era chamado por todos, era o filho preferido da Universidade de Oregon, e atraía sempre muita gente para assistir suas competições. As arquibancadas lotadas do Hayward Field gritavam efusivamente palavras de incentivo para Prefontaine. Dezenas de cartazes escritos GO PRE eram agitados.

Prefontaine ultrapassou a barreira dos 1000m na frente, Wottle logo atrás. Bill Bowerman observava a figura única de Prefontaine, comparando-o aos demais atletas. Ele era mais baixo que os demais, pernas mais curtas. Cabelos ao vento, um bigode marcante em seu rosto, costeletas. Nike em seus pés. Mais do que suas características físicas, na verdade, era seu espírito que o diferenciava de todos os demais atletas na pista. Sua entrega era ímpar desde o tiro de largada — Prefontaine não era o tipo de atleta tático que dosava suas energias ao longo das provas e acelerava num sprint final; não, era sua característica assumir a liderança logo de cara e imprimir um ritmo que obrigava os adversários a mudar suas estratégias caso quisessem acompanhá-lo. Frequentemente diziam que ele não era um atleta, mas um rebelde correndo incansavelmente. Não foram poucas as vezes naquela mesma pista da Univ. de Oregon em que ele abriu vantagens consideráveis e nos últimos metros aumentava a velocidade, abrindo ainda mais distância sobre seus concorrentes.

Steve Prefontaine (reprodução: Internet)

Os atletas já avançavam para os últimos 500m da prova. O ritmo era muito forte. A eletricidade tomava conta de cada um no Hayward Field. Pre podia sentir a presença de Wottle próximo a ele: evitava olhar sobre os ombros, evitava olhar pra trás, mas sabia que o Wottle estava ali. Eram dois atletas de alto nível disputando mais do que uma prova — eles buscavam escrever novos capítulos importantes em suas carreiras, que contariam não só sobre conquistas, mas também sobre recordes.

Apenas um ano antes, em 72, o maior palco do mundo viu Wottle e Prefontaine escreverem páginas distintas da história do atletismo olímpico, em Munique. Enquanto Wottle venceu de maneira surreal a prova dos 800m — faltando 200m para o fim ele estava em sexto e numa arrancada extraordinária chegou à medalha de ouro; para Prefontaine o gosto foi amargo: liderou boa parte da final dos 5000m mas acabou sendo superado categoricamente pelos adversários perto do fim, perdendo inclusive a medalha de bronze nos últimos passos. Vale lembrar que Prefontaine ainda era um atleta universitário nesta final olímpica, correndo contra os maiores atletas profissionais de média e longa distâncias.

A prova de 1 Milha estava chegando ao seu clímax. Enquanto Steve avançava veloz rumo à linha de chegada, Bill Bowerman se perdeu em seus pensamentos por um instante. Passou a ver tudo em câmera lenta. Percebia em slow-motion o movimento dos músculos dos braços e pernas dos atletas, o barulho da torcida se tornando um som indistinto e abafado. Por uma fração de segundo, Bill se viu sozinho no estádio completamente vazio. Olhou à sua volta e seus olhos encontraram Prefontaine correndo sozinho, avançando pela reta; ao chegar na curva final, porém, Pre seguiu reto, abandonando a pista e correndo em direção à saída principal do Hayward Field, sumindo da vista de Bill, que em seguida, sentiu uma mão em seu ombro. Era o próprio Prefontaine, que sorriu ofegante, suor escorrendo pelo rosto e lhe disse: “o melhor ritmo de corrida é o ritmo suicida e hoje parece um bom dia para morrer!”.

E, de repente, tudo voltou a ser veloz, o barulho ensurdecedor da torcida, os corpos dos atletas se misturando, braços, pernas, o som dos passos. De volta à realidade, a imagem de Prefontaine sobressaía aos olhos de Bowerman, e os swooshs dos seus Nikes Pre Montreal eram uma imagem borrada pela velocidade.

Faltando apenas 200 metros para o fim, Dave Wottle forçou o ritmo e ultrapassou Pre, que ainda resistiu, tentando uma arrancada, buscando retomar a liderança. Nos últimos metros era possível perceber em seu rosto que ele estava indo além do limite das suas forças, e sua entrega era total. Wottle, por sua vez, trazia também expressões de dor no rosto debaixo do boné, sua marca registrada nas pistas.

Wottle e Prefontaine (Foto: The Mercury Chronicle)

Wottle foi o primeiro a cruzar a linha de chegada, fazendo o melhor da sua vida para a corrida de 1 Milha.

Prefontaine chegou logo atrás, também fazendo o melhor tempo de sua carreira.

Seu tempo foi de 3 minutos de 54 segundos. 3:54.

Esta foi uma das três únicas derrotas dele na pista do Hayward Field. Ao todo, foram 35 vitórias em 38 corridas dentro do estádio da Universidade do Oregon.

Bill Bowerman seguia imóvel na parte interna do gramado, imediatamente após o fim da prova. Baixou o olhar, suspirou fundo. E naquele momento não foi decepção que veio à sua mente. Na verdade, Bill teve um vislumbre de tudo o que Pre representava e ainda poderia representar para o Atletismo americano e mundial, mas também o que Pre representaria para a Nike.

Nos dois anos seguintes, Pre quebrou o recorde americano das 2 Milhas, 3 Milhas e 6 Milhas, e também dos 2000m, 3000m, 5000m e 10000m. Tornou-se o maior atleta americano e também um superstar. Cronistas esportivos diziam que ele era o melhor atleta que surgiu nas pistas desde Jesse Owens, mas também o comparavam a astros do cinema e da música, jovens e rebeldes, como James Dean e Mick Jagger. Pre era, sem dúvida, uma figura pop — “good-looking”, cabelos longos, bigode marcante, jeito extrovertido, ar arrogante. Nas pistas, sua personalidade contribuía para sua fama — suas corridas eram sempre um espetáculo.

Foto: Larry Sharkey

Pre tornou-se o primeiro atleta a assinar com a Nike, e sua popularidade e seus resultados na pista levaram à Nike a um outro patamar, finalmente rivalizando com a Adidas dentro das pistas.

Antes mesmo de ser contratado, Prefontaine já tinha acesso e utilizava os tênis produzidos pela marca americana a partir do momento em que passou a ser treinado por Bowerman. Pre experimentava nas pistas as criações de Bill, como o icônico solado de waffle, e testava as alterações que eram feitas nos tênis.

O chamado “boom da corrida” dos anos 70 nos EUA teve Prefontaine como um dos seus protagonistas, revolucionando a corrida amadora. Ele viajava pelo país ao lado de Bill divulgando os tênis de corrida da Nike e incentivando a prática esportiva para atletas e não-atletas.

No auge da sua carreira, porém, e sendo apontado como umas maiores esperanças de ouro olímpico do atletismo americano nas Olimpíadas de Montreal em 1976, Pre faleceu num trágico acidente de carro em Julho de 1975, interrompendo uma trajetória extraordinária — mas deixando um legado imenso e a certeza de que ficou muito a ser conquistado por ele.

Salto no tempo. 2019. A Nike lança seu projeto n.354, evocando o tempo recorde conquistado por Steve. Agora entendemos que 354 não se relaciona com uma vitória ou uma medalha de ouro, não se relaciona com o “vencer”, mas sim representa a superação sobre si mesmo — uma inspiração para todos.

E se ainda houver dúvidas sobre a importância dele para a trajetória da Nike, basta lembrar que até hoje há apenas uma única estátua erguida para um corredor dentro de sua Sede: a estátua de Steve Prefontaine, sua imagem correndo com a Deusa da Vitória nos pés.

Foto: Nike

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