Hidrólise — O que realmente é e como evitar?

João Pedro Lucena
Coletivo Sneakers
Published in
6 min readAug 10, 2022

Você já abriu uma caixa de tênis e se deparou com a entressola esfarelada? Já saiu para dar um rolê usando um Air Max antigo e a sola ficou pelo caminho? Já ouviu falar sobre hidrólise e morre de medo que isso aconteça? Então esse texto é para você; e caso nunca tenha ouvido falar sobre, relaxa que nos próximos parágrafos você vai entender melhor como e porque isso acontece.

A hidrólise, no caso do universo sneakerhead, é um processo que ocorre nas entressolas e fazem elas ficarem desgastadas e esfareladas, literalmente caindo aos pedaços em alguns casos mais extremos. O termo hidrólise vem do grego antigo “hydro” (água) e ”lysis” (quebra ou separação), portanto ela é uma reação química envolvendo a quebra de uma molécula utilizando água. Nos tênis, essa molécula a ser quebrada é a que constitui as entressolas.

Figura 1: Um Jordan 7 “Bordeaux” completamente hidrolisado.

Para entendermos melhor como ela ocorre, ou não, no seu tênis, primeiro temos que entender quais materiais normalmente são usados nas entressolas.

  • Poliuretano

Uma parte considerável dos calçados que conhecemos hoje em dia possuem PU, ou Poliuretano, na composição da sua entressola. Usado em diversos produtos comuns do nosso dia a dia, como o pneu de um carro por exemplo, o PU é uma boa opção para dar conforto ao tênis sem deixa-lo muito pesado, além de ser durável, resistente a exposição a luz e à abrasão. Nos tênis, os dois tipos mais comum de PU que são usados são o poliéster e o poliéter. As características atrativas do poliéter para a indústria são, por exemplo, sua resistência à hidrólise e inibição de desenvolvimento microbiano, enquanto o poliéster possui alta resistência à óleos e graxas. Como nos calçados a entressola possui contato próximo com o chão que pode estar com água, sujeira, óleos, graxas, é interessante o uso do poliéster na confecção de entressolas. O lado negativo é, justamente, o fato dele hidrolisar, principalmente quando é exposto a níveis mais elevados de temperatura e umidade.

  • EVA

A borracha EVA é uma espuma sintética bastante usada em tênis voltados a performance, como os de corrida. Entre suas principais características está a absorção de calor — não podendo, porém, ultrapassar os 80 ºC, pois pode entrar em combustão. É leve, com grande durabilidade e resistente à pressão, absorvendo choques com facilidade. Tem as mesmas propriedades resilientes do PU, sendo ainda mais leve e durável. O custo, no entanto, é mais elevado que do Poliuretano.

  • TPU

O TPU, ou Poliuretano Termoplástico Expandido, é formado pela junção de partículas de poliuretano termoplástico que se expandem até formar células fechadas com pequenas bolsas de ar no interior dessas estruturas. No mundo dos Sneakers, ficou famoso com a tecnologia Boost, da Adidas. Além das características de resistências similares (e em alguns casos superiores) aos materiais apresentados acima, o TPU possui boa capacidade de recuperação elástica, aumentando sua vida útil. O lado negativo, novamente, é o preço.

Figura 2: O Ultraboost da Adidas, um exemplo clássico de TPU.

Como mencionamos anteriormente, um dos tipos de PU utilizados nas entressolas podem sofrer hidrólise, ainda que muito usados por suas outras características. O poliuretano é um polímero, palavra originada pela junção de “polus” (muitas) e “meros” (partes), ou seja, um polímero é um composto formado pela repetição de muitas unidades iguais em uma estrutura, como um boneco feito por várias peças iguais de Lego. No caso da imagem abaixo, as peças de Lego seriam os “meros” e o tênis seria o polímero.

Figura 3: Adidas Superstar de Lego, lançado em julho de 2021

Um dos tipos de reação para formação de polímeros é chamado de policondensação, em que a partir de 2 reagentes, o polímero é formado e há a liberação de uma molécula de água, como mostra a figura 4.

Figura 4: Exemplo de reação de policondensação.

Mas e se a reação no sentido contrário pudesse acontecer? Nesse caso, a seta seria invertida e teríamos a formação das moléculas que originaram o polímero a partir da degradação do mesmo com a água. Essa é exatamente a reação que chamamos de hidrólise e que já tínhamos definido no início desse texto, lembra? Você pode ter pensado “então basta não sair com o tênis em dia de chuva ou não lavar ele que dá para evitar a hidrólise”, mas, infelizmente, a química não funciona dessa forma. A origem dessa molécula de água não precisa necessariamente ser da forma mais direta como pensamos, como uma poça ou a chuva.

O melhor amigo da hidrólise é o vapor de água, a tão popular umidade do ar; ele consegue penetrar muito mais facilmente pelas minúsculas cavidades da entressola, diferentemente da água líquida, e aumentar a velocidade em que o seu querido tênis começa a cair aos pedaços. Essas cavidades são impossíveis de serem vistas a olho nu e boa parte das pessoas sequer fazem ideia que elas existem, mas a figura 5 mostra muito bem sua existência. São nesses poros que a reação acontece, e não simplesmente na parte externa que enxergamos, por isso o vapor de água é tão “perigoso”, já que a água líquida entra em contato apenas com a parte externa da entressola. O porquê disso possui argumentos muito técnicos que fogem do limite do nosso texto, mas agora você já sabe como esse mal dos sneakerheads ocorre.

Figura 5 — Microscopia eletrônica com ampliação de 350x de uma entressola de EVA. Fonte: Verdejo, R.; Nills, N. J.; Journal of Biomechanics, 2004.

Depois dessa explicação, fica claro que o PU é um material pouco indicado para quem quer evitar a hidrólise de seus tênis. Vamos todos deixar de usar calçados com Poliuretano? Com certeza não! Afinal, queridinhos da série Air Max (Ex: 1, 90. 95, entre outros), Jordans (3, 4, 5, 8, entre outros) e clássicos da New Balance (como o 1500) seguem fazendo os olhos de muitos sneakerheads brilharem. Então agora que você já sabe o que é a hidrólise, fique de olho nos seus tênis porque entre 5 e 10 anos é o período em que os pares começam a apresentar algum “sintoma” desse mal (é claro, dependendo de como você cuida e armazena eles).

Sabendo que a hidrólise é uma certeza, algumas medidas podem ser tomadas para atrasá-la, estendendo a vida útil do seu par. O primeiro, e mais importante, é o armazenamento dos calçados. Lugares de baixa umidade (abaixo de 70%) e temperatura (abaixo de 30 ºC) são sempre os mais indicados. Como isso nem sempre é fácil no Brasil, uma boa dica é armazenar os calçados sempre com aquele clássico saquinho de sílica em gel. A sílica retém a umidade do ar do ambiente através da adsorção física, processo por meio do qual moléculas de água ficam retidas nos poros do dessecante e que faz necessária a troca periódica do material já saturado. Outras dicas para o armazenamento podem ser desumidificadores de ar no ambiente, e embalagens como zip lock, ou fechamento à vácuo. É importante ressaltar que os plásticos podem ter poros, fazendo com que sua ação seja ineficiente, então preste atenção ao material que você está usando.

E finalmente: use os sneakers! O uso faz com que as moléculas se agitem, dificultando as moléculas de água a atingirem as regiões mais internas da entressola, já que o tênis não está mais confinado dentro de uma caixa ou armário. Algumas pessoas têm dó de usar certos pares, o que é compreensível, dado que alguns são obras de arte. Mas nada melhor que desfilar essa obra por aí, pois além de ser bonito, o uso também faz com que ele dure por mais tempo, ao menos no quesito hidrólise.

Em suma, a hidrólise é inevitável para os calçados que possuem PU em sua composição de entressola. E a melhor coisa a se fazer, além de armazená-los corretamente e limpá-los, é aproveitar para usá-los enquanto há tempo.

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