Tecnologias à prova d’água: O que são, para que servem e como entraram no mundo dos Sneakers?

Danilo Carlin
Coletivo Sneakers
Published in
6 min readAug 27, 2022

Você já tomou chuva no seu tênis de camurça e praticamente perdeu ele? Ou então, enfiou o pé numa poça e ficou com a meia molhada o dia inteiro? Pior ainda, já sentiu seu pé ficar gelado e até mesmo ficou doente por ter caído água nele? Essas situações não são comuns, mas podem sim acontecer no dia a dia. É justamente isso que as tecnologias a prova d’água, de vento e com materiais respiráveis procuram resolver. Sua origem está nos atletas e entusiastas de escalada e montanhismo, que enfrentam temperaturas e condições climáticas extremamente agressivas e comumente sofriam de hipotermia durante a prática.

De forma simples, a tecnologia é composta, na maioria dos casos, por uma membrana (camada de tecido) que bloqueia a entrada de líquido e vento para a vestimenta, mas que permite o fluxo de vapor para fora dela. Como? A membrana é feita a partir do alongamento da fibra de politetrafluoretileno — PTFE (conhecido na boca do povo por TEFLON). Quando esticado, o Teflon forma um material microporoso, com mais de 1 milhão de poros por centímetro quadrado. Dessa forma, o laminado (nome dado a aplicação da membrana ao tecido original da peça) além de proteger o usuário da água da chuva, do vento e até da própria neve, permite com que o vapor de suor emitido durante a atividade física saia da roupa. Para fins de conhecimento, a água na forma de vapor tem muito mais facilidade de atravessar membranas ou espaços porosos por ser uma molécula se movimentando independente. Já uma gota de chuva é um aglomerado de moléculas mais próximas umas das outras, tendo propriedades diferentes do vapor e maior dificuldade de atravessar o tecido.

Figura 1 — A proposta da tecnologia: Evitar que a água chegue ao corpo do usuário e abaixe a temperatura corpórea

É comum que na mesma peça sejam aplicadas duas ou até três membranas, dado que são muito finas e pouco resistentes à abrasão. Essas aplicações trazem um dos poucos lados negativos da tecnologia (e que pode ser sentido também nos sneakers): as roupas ficam pesadas!

O primeiro exemplar da tecnologia foi apresentado em 1977, em uma jaqueta da marca Early Winters, que continha a membrana criada pela GORE-TEX®. Essa segunda não só é líder de mercado, mas virou tão referência no assunto que muitas pessoas acham que é a única que faz a tecnologia, algo parecido com o que acontece com a Gilette® e a Band-Aid®, por exemplo. Outras marcas também se desenvolveram ao longo dos anos para a criação de materiais resistentes à chuva e vento. Entre elas, podemos citar a Porelle® e a eVent®, que são marcas próprias e fornecem a tecnologia a outras do setor de roupas. Além dela, gigantes do meio outdoor como a Eastern Mountain Sports, Patagonia e a The North Face também possuem suas tecnologias (System Three, H2No e HyVent, respectivamente).

Voltando para a GORE-TEX®, a marca criada em 1969 foi se desenvolvendo ao longo dos anos, fazendo com que o material pudesse ser colocado em diversos tecidos. Por isso, hoje é possível ver o produto criado por Bob Gore em chapéus, luvas, meias, bolsas e claro, sneakers. Em 1980, o material foi visto em botas de escalada da Danner and Donner Mountain Corporation. Outras marcas de outerwear como a Mammut, a La Sportiva, a Salewa e a Scarpa também fizeram uso da tecnologia em suas roupas e calçados.

Em 1981, o material já tinha tanta fama que a NASA usou na camada externa dos uniformes de seus astronautas, e ainda segue utilizando materiais da marca para missões espaciais. Foi nesse mesmo ano que a tecnologia foi parar em um calçado da Nike. Lançando uma linha de trilha, que precedeu a hoje consagrada ACG (All Conditions Gear), o Approach foi o primeiro tênis (ou bota?) a conter GORE-TEX.

Figura 2 — Nike Approach, de 1981, o primeiro calçado da marca com GORE-TEX

No fim dos anos 80, a trilha e corrida em terrenos adversos engrenou e as marcas esportivas colocaram seus olhos também no setor. Além da criação da linha ACG pela Nike que teve seu próprio Pegasus em 88, a adidas também entrou no jogo e em 1990 lançou o Torsion SP, um modelo com GORE-TEX.

Figura 3 — O Torsion SP, de 1990

Eventualmente, o GORE-TEX saiu do mundo das trilhas e foi para a cultura pop como um todo — como alguns gostam de dizer, furou a bolha. Isso pode ser visto na letra da música “Fall Back”, do rapper Big L, que dizia “Nautica sweats with the fresh Gore-Tex”. O cômico personagem George Constanza, da série “Seinfeld”, sucesso absoluto dos anos 90, disse em um dos episódios que era seu material preferido para jaquetas. A Nike manteve sua relação com a marca usando a tecnologia em tênis da linha ACG como o Minot e o Humara (1997 e 1998, respectivamente).

No entanto, era uma questão de tempo para que a GORE-TEX se expandisse ainda mais no segmento de sneakers. Isso começou a acontecer em 2014, quando a Bodega se juntou a ASICS e lançou dois ‘Gel Lyte V’ com a temática “Get Wet” (se molhe), que usavam a tecnologia. O resultado além de positivo visualmente também se mostrou de grande valia para o dia a dia.

Figura 4 — Um “game changer” — O GL5 de Bodega trouxe o Gore-Tex para o casual

Desde então, vemos a tecnologia aparecendo recorrentemente em lançamentos de inverno de diversas marcas, como o New Balance 580, os Ultraboost da Adidas e, desde 2019, no Air Force da Nike. Além das parcerias constantes, é possível ver a GORE-TEX em colaborações, como no 57/40 da New Balance com a japonesa Comme des Garçons, o Terrex da Adidas com a Kith, o Gel-Venture 6 da Asics com a Atmos e até em lugares que seriam difíceis de ser imaginados no início da marca, como um em alguns Wallabee da Clarks e Old Skool da Vans. E claro, as aparições em tênis de performance como os da linha ACG da Nike, Hoka One One e o Hierro da New Balance.

Figura 5 — Um dos tênis mais clássicos de todos os tempos, o Air Force 1 também recebeu a roupagem

A tecnologia à prova d’água e respirável trazida pela GORE-TEX e as outras marcas apresentadas no texto não entraram no mundo dos Sneakers por uma mera moda ou por influência de algum famoso. Embora isso possa ter ajudado, a verdade é que tanto nos climas frios e de neve do hemisfério norte, quanto nas chuvas recorrentes no hemisfério sul, quem gosta de tênis não quer perder seu conforto, nem seu estilo e muito menos seu calçado. E é justamente nos dias mais difíceis que ela mostra para que veio, sendo uma inovação essencial e que ainda veremos muito sobre.

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