S de saudade: edição quarentena

Ana Luísa Ribeiro Martins
Qu4tro
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3 min readMay 14, 2020

Surto de saudade. Frase com dois s’s que descreve o sentimento de muitos de nós, desde metade de março deste ano — ou até mesmo antes. A verdade é que saudade é um sentimento único, que poucas vezes consegui ouvir a descrição que correspondesse ao que eu tinha dentro do meu peito. É tão, mas tão único que só existe no nosso dicionário, sem tradução em nenhuma expressão, em diversas línguas. Mas pode ser traduzido como cheiro de bolinho de chuva em fim de tarde, aquele perfume cítrico que me faz espirrar. Pode ser o tom de uma risada que chega a doer a barriga. Podem ser aquelas fotos tiradas, mas sem lembrança do registro. A verdade é que saudade tem suas próprias traduções e não pode ser descrita por ninguém, porque cada um sente e remete de uma forma diferença.

Hoje, eu tive saudade. Assim como tenho há muito tempo da turma do colégio ou dos melhores amigos da faculdade. Saudade de um amigo que se mudou pra longe há dois anos, mas o tempo não fez o sentimento diminuir. Do abraço quente de vó, do amor antigo que se foi. A gente não aprende a não sentir saudade, aprende a conviver com ela, lado a lado, todos os dias. Mas por que raios, justamente agora, a saudade é tão comum e corriqueira em grupos de Whatsapp? Às vezes, recebo mais “estou com saudade” do que “oi, tudo bem?”.

Todas as situações que eu citei até aqui são pontuais. De momentos, de certas pessoas, de lugares e de sensações. Ninguém nos ensinou que ela poderia ser sentida todos os dias, o tempo todo, de todo mundo. O isolamento me fez aprender como até a fila do xerox da faculdade faz falta. Mas ele ainda não me ensinou a sentir menos falta das piadas dos meus amigos, em todos os entardeceres no pátio da faculdade, antes de uma longa noite de aula. E acredito que nem vai.

Seja em quarentena, com ou sem pandemia, aprender a lidar com esse sentimento indescritível faz parte. Muitas pessoas sofrem com dores de perdas e tentam lidar com isso há anos. “É só uma fase, já vai passar”. Mas a verdade é que cada um, e somente esses, sabem quando vai passar. Pode ser que não passe, pode ser que amanhã seja só mais uma memória distante. Tudo é imprevisível, cada dia mais. Mas o que eu quero dizer com tudo isso é bem simples: não deixe de viver pelo sentimento de não ter companhia. Você, neste exato momento, tem a sua melhor parceria de todos os tempos: você mesmo. É quem te acompanha nos melhores e piores momentos. Quem fez aquela prova difícil de matemática no vestibular ou chorou no final do seu filme preferido. A sua companhia deve ser a sua melhor presença.

Não deixe para sentir saudade de situações que não foram vividas por pura e exclusiva escolha sua. Não esqueça de aumentar o volume da sua música preferida e cantar até ficar sem ar. Não esqueça de se olhar no espelho, de tirar o pijama e se sentir bem. Por mais que tudo se intensifique, que tudo seja um grande ponto de interrogação, agora, neste momento, você tem a melhor pessoa que poderia ter ao seu lado.

Nessa quarentena, quando a saudade chegar ao seu lado, querendo te dar um oizinho, não se esqueça de sorrir para ela, sentir o que tiver que sentir e se permitir ser feliz. Uma frase com muitos s’s, mas que só é realmente boa acompanhada por um f: ser feliz. Não tenha saudade de você mesmo. Essa lembrança pode não voltar, mas a sensação, sim. E quando a vontade de deixar tudo para trás chegar, se lembre que você é sua melhor parceria para passar por cima de tudo isso. E sempre será, com ou sem pandemia, com ou sem s’s de saudade.

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Ana Luísa Ribeiro Martins
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Escrevo para lembrar, criar e viver. Escrevo para que, talvez, você encontre o que faltou quando eu fui ler.