Aspectos Redentivos na Arte Urbana

Kaiky Fernandez
ColetivoTangente
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6 min readDec 3, 2018
Mural do artista Marcelo Eco em São Paulo

Algum tempo atrás estava em Anápolis - uma cidade aqui do interior de Goiás - e lembrei que naquele dia estava acontecendo um mutirão de grafite em um bairro periférico de lá. Fiz o convite a alguns amigos que estavam comigo e fomos conferir. O evento, financiado pelo Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás, reunia mais de 50 artistas de 3 estados diferentes (além do Distrito Federal).

Quando chegamos, estava na metade do processo. O mutirão acontecia numa praça central do bairro e suas imediações (casas, um colégio público, estabelecimentos comercias), onde foi possível ver um pouco do “antes e depois”: algumas partes já haviam sido tomadas pelos trabalhos, outras ainda estavam intocadas.

Como admirador da arte de rua, fiquei refletindo sobre isso e encantado em como uma ação dessa tem poder de trazer vida a uma comunidade, a um bairro, a uma cidade. Uma invasão de cores, formas, desenhos, expressões que expulsam dali o cinza, os antigos anúncios desbotados, a fealdade de um local que fora deixado ao descaso.

Quem mora em Goiânia - e acredito que a realidade daqui não deve ser muito diferente dos outros centros urbanos - sabe o quanto a paisagem da cidade geralmente é repulsiva. Uma invasão de cinza em contraste com a guerra dos anúncios, dos outdoors, dos letreiros luminosos, das placas. Juntamente com isso, um planejamento urbano que favorece as construtoras e a indústria automotiva.

Posso estar enganado, mas minha percepção é que a cidade não foi, ou pelo menos não está sendo, projetada para pessoas. Uma pena! Não deveria ser assim! Não biblicamente. Na história da criação, a narrativa bíblica no diz que Deus colocou o homem num jardim.

E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar. (Gênesis 2:15)

Não sei qual é a concepção de “jardim” que você tem na cabeça, mas é bom lembrar uma coisa: jardim não é uma grande mata, uma grande floresta aleatória. Jardim é um ambiente planejado, onde a arte e a natureza se intersectam, um local inspirador, belo.

E assim também será na Nova Jerusalém, a cidade onde o povo de Deus habitará. As Escrituras nos mostram que ela será adornada, bela, cheia de pedras preciosas:

Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. (Apocalipse 21:2)

Os fundamentos da muralha da cidade estão adornados de toda espécie de pedras preciosas. O primeiro fundamento é de jaspe; o segundo, de safira; o terceiro, de calcedônia; o quarto, de esmeralda; o quinto, de sardônio; o sexto, de sárdio; o sétimo, de crisólito; o oitavo, de berilo; o nono, de topázio; o décimo, de crisópraso; o undécimo, de jacinto; e o duodécimo, de ametista. As doze portas são doze pérolas, e cada uma dessas portas, de uma só pérola. A praça da cidade é de ouro puro, como vidro transparente. (Apocalipse 21:19–21)

Nesse intervalo de tempo entre a criação (o jardim) e a consumação (a nova Jerusalém), vemos Deus também instruindo seu povo a produzirem arte, se preocuparem com o meio onde eles vivem e produzirem cultura!

Tá bom, Kaiky. Mas onde você quer chegar com isso?

Quero chegar na ideia de que existem aspectos redentivos na arte urbana e todas as suas manifestações. Para começar a discussão, apresento aqui quatro desses aspectos:

1. Transformação de lugares ordinários
O grafite e as demais expressões de arte urbana têm o poder - ou no mínimo a potencialidade - de trazer a arte para a nossa vida ordinária, para os locais comuns, para a periferia, para o centrão abandonado, e com isso, transformá-los. Fazer deles lugares mais belos e inspiradores, com mais vida, mais humanizados.

Talvez você já tenha visto alguns anos atrás nas redes sociais sobre o caso da favela mexicana cujos índices de violência diminuiram após uma revitalização da mesma feita por um coletivo de arte chamado Germen Crew. Segundo a matéria da Casa Vougue, após a intervenção artística “surgiu um espírito comunitário. As pessoas estão cuidando da segurança do bairro com as próprias mãos”.

Comparativo: antes e após a ação da Germen Crew

Para fugir um pouco dos exemplos mais óbvios, procure saber, caso ainda não conheça, sobre “jardinagem de guerrilha”.

2. Ateliê e galeria públicos
Segundo Rookmaaker [1], o Renascimento, e posteriormente o Iluminismo, fizeram com que a arte ficasse cada vez mais restrita, sendo abolida da vida cotidiana e confinada aos museus. Paralelamente, os artistas também se isolaram cada vez mais em seus ateliês.

Penso que a arte urbana consegue romper com isso. Nela, o ateliê e a galeria são públicos. É na rua onde o artista desenvolve (ou conclui, em alguns casos) o seu trabalho. Ele não fica confinado a um espaço fechado, privado, onde só ele e quem mais ele convidar tem acesso.

Sua arte também não fica exposta em um local fechado. A dinâmica muda: se na arte de galeria você precisa se deslocar ao local, na arte urbana ela vem até você. Te encontra na esquina da sua casa, no trajeto ao trabalho, no muro da faculdade. Está lá, disponível para todo mundo.

É a arte produzida na cidade e para a cidade. Está lá como uma oferta, seja trazendo crítica, trazendo reflexão ou simplesmente embelezando o local.

Carroça de um catador de material reciclável customizada pelo artista Thiago Reginato.

3. Acessibilidade
Vou fazer uma analogia aqui: sabe a simplicidade que há em jogar futebol? Basta uma bola e um espaço aberto (uma quadra, um campo, uma praça, um beco, uma rua…). O resto é improviso. Os gols podem ser padrão FIFA, podem ser de chinelo, podem ser de caixote de madeira. Isso é o de menos. É simples. Qualquer um pode jogar - mas isso não significa que todos que jogam sejam bons (rs).

Na arte urbana é a mesma coisa: pode ser acessível no que tange aos materiais necessários para produzí-la. É uma arte que permite improviso, que não requer grande poder aquisitivo ou um estudo formal na academia (embora ele tenha sua importância). Não é necessário pagar R$28,00 em uma única folha de papel Canson Montval 300g/m², como quem produz aquarela às vezes precisa fazer. Um spray e uma chapa de raio-x, por exemplo, já são suficientes para um stencil.

Stencil do artista “El Mendez”, em Goiânia/GO.

4. Aspecto relacional
Uma das coisas mais legais da arte urbana é o aspecto relacional. É o caso dos mutirões, como citei no início do texto, por exemplo. São vários artistas trabalhando juntos, integrando o seu trabalho ao do outro, conversando, trocando ideia, compartilhando materiais. Algumas vezes, o almoço é fornecido pelo local onde o mutirão acontece (uma escola pública, por exemplo) e todos comem ali juntos. Para nós, cristãos, isso é algo importantíssimo: sentar juntos à mesa.

Mas para além dos mutirões, é comum ver artistas produzindo juntos na rua, sejam em duas ou três pessoas. Cada um com sua técnica, com seu estilo, mas todos contribuindo pra um resultado final.

Mural colaborativo em execução por Camila Actum, Sérgio Bergocce, Victor Tognollo e Thiago Reginato.

Longe de querer esgotar o tema, minha proposta foi realmente começar uma discussão. Se o que a Palavra nos diz é verdade - e eu creio que sim - então nós, cristãos, deveríamos ser umas das pessoas mais interessadas pela arte urbana. Deveríamos abençoar nossas cidades ofertando a elas. Deveríamos experimentar mais e buscar novas possibilidades criativas.

Para finalizar, faço uma ressalva aqui: não estou usando a Bíblia para validar qualquer tipo de intervenção urbana. Há questões éticas, morais e legais a serem discutidas. Há uma forma correta do cristão se relacionar com a cidade e intervir nela. Mas isso é assunto para outro texto.

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[1] ROOKMAAKER, Hans. A Arte Não Precisa de Justificativa. Viçosa: Editora Ultimato, 2010.

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