Da descendência de Caim

A redenção da criatividade humana na narrativa bíblica

Coletivo Tangente
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Daniel Figueiredo

Se você está lendo esse texto, provavelmente conhece a história de Caim, o primeiro assassino de que se tem notícia. Após matar o próprio irmão Abel a sangue frio, Caim foi amaldiçoado por Deus, e até hoje é visto como maldito por todos aqueles que conhecem a narrativa bíblica. A maldição atingiu, entre outras coisas, a sua ocupação diária: “Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo” (Gênesis 4.12). A frustração com a atividade humana vem como fruto do pecado humano e do castigo divino — assim como havia sido com seu pai Adão, a quem a terra passou a produzir espinhos e ervas daninhas. Na realidade, Adão e Caim não foram os únicos a lidar com isso. Desde o dia em que o fruto proibido foi mordido, cada um de nós experimenta um pouco dessa frustração em nossos afazeres, seja por escassez de recursos, cansaço excessivo ou o “bom e velho” bloqueio criativo. Vivemos em um mundo caído, e as nossas atividades comuns não escaparam dos efeitos da queda.

Foi em meio a esse cenário de morte, maldição e frustração que Caim construiu sua família. Vejamos o que diz o texto bíblico:

“Então Caim afastou-se da presença do Senhor e foi viver na terra de Node, a leste do Éden. Caim teve relações com sua mulher, e ela engravidou e deu à luz Enoque. Depois Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Enoque. A Enoque nasceu-lhe Irade, Irade gerou a Meujael, Meujael a Metusael, e Metusael a Lameque. Lameque tomou duas mulheres: uma chamava-se Ada e a outra, Zilá. Ada deu à luz Jabal, que foi o pai daqueles que moram em tendas e criam rebanhos. O nome do irmão dele era Jubal, que foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. Zilá também deu à luz um filho, Tubalcaim, que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro. Tubalcaim teve uma irmã chamada Naamá.” (Gênesis 4.16–22)

Sim, essa é mais uma daquelas genealogias bíblicas que tanta gente pula na sua leitura. Mas há aqui alguns detalhes que podem passar despercebidos por entre os nomes citados. Em primeiro lugar, observe que, após se afastar de Deus, Caim fundou uma cidade — essa é a primeira vez que uma cidade é mencionada nas Escrituras. Em segundo lugar, algumas gerações adiante, vemos que os filhos de Lameque — que, diga-se de passagem, foi um assassino ainda pior que Caim — foram pioneiros no desenvolvimento da pecuária, da música e da metalurgia. Se o castigo da terra havia frustrado o plantio de Caim, a graça divina fez brotar uma diversidade de outros ofícios em que a criatividade humana, mesmo manchada pelo pecado, pôde se manifestar das mais variadas formas.

Quando percorremos a narrativa bíblica, vemos que as atividades que se desdobraram a partir dessa família não foram rejeitadas por Deus como algo de procedência pecaminosa, mas foram incorporadas no seu relacionamento com o seu povo. Após entrar em aliança com os israelitas, o Senhor ordenou que construíssem um local de culto, instruindo nos mínimos detalhes como cada elemento deveria ser preparado e posicionado. Ouro, metais, tecidos, querubins, romãs de tom azul e púrpura adornavam o tabernáculo (Êxodo 25). Certamente as ferramentas de bronze e de ferro, herança de Tubalcaim, tiveram grande utilidade nesse projeto. Deus poderia ter apenas feito um local que cumprisse sua função, mas ele fez questão de incluir beleza, criatividade e habilidade artística no seu tabernáculo. Mais do que isso, ele não fez surgir seu projeto já pronto em um piscar de olhos — como poderia muito bem ter feito -, mas decidiu que pessoas de carne e osso se empenhariam em fazê-lo.

Mais adiante, após entrar na terra prometida, os israelitas se organizaram em uma cidade: Jerusalém. O plano de Deus não era que o seu povo vivesse no campo ou em um jardim, como era no Éden, mas que se organizasse em um núcleo urbano, com ruas, comércio, infraestrutura e movimento. Embora muitos de nós tenham a tendência de identificar o campo e a natureza com algum tipo de inocência e a cidade como ambiente pecaminoso em si mesmo, não é assim que Deus vê as coisas. Se por um lado, a criação original era boa (Gênesis 1.31), ela não foi feita para permanecer exatamente como estava. Deus colocou o homem no jardim para desenvolver a criação, o que chamamos de mandato cultural (Gênesis 1.28). O Criador pôs na sua criação um potencial de desenvolvimento a ser explorado pelo homem, que deveria não apenas guarda-la do mal, mas cultivá-lo — linguagem que dá origem ao termo “cultura”.

Anos depois, essa mesma cidade seria local de construção do famoso templo de Salomão, repleto de cores e adornos milimetricamente selecionados por ordem divina (2Crônicas 3,4). Assim como havia sido na construção do tabernáculo, o templo deveria ser cuidadosamente edificado não apenas para atender a necessidades práticas, mas para expressar beleza. Como comentou Francis Schaeffer: “Atente-se para isso: O templo era coberto de pedras preciosas para ornamento. Não havia razão pragmática — eles não possuíam valor utilitário algum. Deus simplesmente queria beleza no templo. Deus se interessa por beleza.” [1]

Com a conclusão do templo, a vida religiosa dos israelitas se tornou ainda mais repleta de um senso estético de maravilhamento e majestade. Isso não se resume apenas à edificação do templo, mas a toda a rotina de culto do povo de Deus. Instrumentos como a harpa e a flauta, herança de Jubal, marcavam presença na adoração ao Senhor. Música e poesia se fizeram presentes nos muitos Salmos cantados pelos hebreus e preservados para nós na Escritura. O conhecido trecho do Salmo 150 expressa bem a diversidade de instrumentos irrompendo em louvor alegre:

Louvem-no ao som de trombeta,

louvem-no com a lira e a harpa,

louvem-no com tamborins e danças,

louvem-no com instrumentos de cordas e com flautas,

louvem-no com címbalos sonoros,

louvem-no com címbalos ressonantes.

(Salmos 150:3–5)

Em tudo isso, vemos que vida do povo da aliança deveria ser recheada de organização urbana, maravilhamento estético e esforço criativo. Mas isso não era apenas o desejo de Deus para os hebreus da antiguidade. Se dermos um grande salto em direção às últimas páginas da Bíblia, veremos que os mesmos elementos criativos que fizeram parte da descendência pecadora de Caim e que tiveram papel na história de Israel serão incorporados na nova criação de Deus: os novos céus e a nova terra. A redenção de toda a realidade criada não resulta em um retorno exato ao que era antes, no Éden. O plano divino parte de um jardim, mas caminha em direção a uma grande cidade, repleta de brilho, ornamentos e pedras preciosas (Apocalipse 21.1–21). Albert Wolters comenta algo interessante sobre essa criação restaurada:

“Não há razão para crermos que as dimensões da realidade terrena (exceto na medida em que elas são envolvidas com o pecado) estarão ausente da nova e glorificada terra que está prometida. De fato, as indicações bíblicas apontam para a direção oposta. Ao descrever a nova terra como a nova Jerusalém, João escreve que ‘os reis da terra lhe trazem sua glória … E lhe trarão a glória e honra das nações (Ap 21.24, 26). Isso, muito provavelmente, se refere aos tesouros culturais da humanidade.” [2]

Deus valoriza a criatividade humana. Ele criou o mundo de uma maneira que essa criatividade fosse exercida para o progresso da criação. Sua graça comum deu talentos aos homens, mesmo aos filhos de Caim. Ele incorporou os frutos dessa criatividade no seu relacionamento com os Israelitas. Ele receberá a riqueza das nações nos novos céus e nova terra. Certamente nós, que hoje aguardamos por essa restauração final da realidade criada, também devemos exercer nossos ofícios — ainda que envoltos pela frustração da queda — de modo a glorificar o Criador. Se as limitações e dificuldades do nosso empreendimento criativo nos lembram que não somos nós que produziremos essa restauração por nós mesmos, a narrativa bíblica nos apresenta um criador que não apenas aprova, mas promove e capacita a criatividade humana para o florescimento de tudo aquilo que é belo e bom. A cruz vence a maldição, dentro e fora de nós, nos reconciliando com o Criador e nos dando esperança onde havia decepção. Se Caim um dia se afastou da presença do Senhor e edificou uma cidade com suas mãos, Deus se reaproximou de nós e nos fará habitar em uma nova Cidade construída por ele mesmo.
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[1] SCHAEFFER, Francis. A arte e a Bíblia. Viçosa, MG: Ultimato, 2010, p. 24.

[2] Wolters, Albert M. A Criação Restaurada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 58.

Daniel Figueiredo é designer gráfico e estudante de teologia nas horas vagas. É membro da Igreja Batista Plenitude, em São Luís, e escreve no blog Coruja Teológica. Acredita na soberania de Cristo sobre cada centímetro quadrado da realidade, e que nele se encontra nosso fim principal e único conforto. Seus trabalhos de designer podem ser vistos aqui: aqui e aqui.

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Somos uma comunidade de cristãos dispostos a pensar arte, entendendo-a como um ponto tangente, um ponto de contato entre a fé cristã e a cultura.