O Fim de Todas as Coisas

Dark, John Milton e Teologia Radical

Coletivo Tangente
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6 min readJul 15, 2020

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por Mauricio Junior Avoletta

“(…) o fim é o começo”, essa frase é icônica dentro da série alemã Dark. Muitos tem feito ótimas análises sobre ela, porque, de fato, há muito o que falar. A série, além de trabalhar muito bem os conceitos de viagem no tempo e mundos paralelos, também traz alguns conceitos da física quântica, da filosofia e da teologia. Não bastasse ser um ótimo passatempo, também é uma ótima forma de pensarmos sobre alguns aspectos da cosmovisão contemporânea e é exatamente isso que tentarei fazer aqui. As referências em Dark são diversas, indo da mitologia grega até literatura inglesa e filosofia alemã, mas aqui, pretendo ser o mais específico possível para não tornar fastidiosa a sua leitura.

Uma das referências menos óbvias, mas extremamente interessante é à dois poemas: o bastante famoso Paraíso Perdido de John Milton e o outro — não tão famoso — é o Paraíso Reconquistado, também de Milton. No primeiro, acompanhamos a sina de Satanás, da sua queda à expulsão e condenação de Adão e Eva no paraíso e a promessa de uma redenção. No segundo, Satanás deixa de ser a personagem principal e da lugar ao segundo Adão. Em Dark temos um curioso paralelo com essa estrutura, ainda que de modo bastante subversivo.

A personagem principal da série, Jonah, é uma referência bastante clara ao profeta Jonas. Jonas e Jonah, além de dividirem o mesmo nome, dividem a mesma personalidade. Ambos são ingênuos, um tanto egocêntricos e ambos, de certo modo, desafiam o criador. Curiosamente essa é a mesma personalidade da personagem Satanás no Paraíso Perdido de John Milton. No decorrer do livro, é comum que sintamos alguma empatia por ele, pois acabamos por saber a história pela perspectiva do anjo caído que se sente injustiçado por Deus, que desafia o criador; o príncipe das trevas que, além de egocêntrico, é bastante ingênuo.

O paralelo entre Jonah e Satanás é interessante, mas apenas alcança seu ápice quando conhecemos o eu mais velho de Jonah, Adam. Sim, a personagem principal que antes era uma mistura de Jonas com o Satã de O Paraíso Perdido, agora é apenas Adão. Aqui temos um paralelo com os dois livros de Milton, porque, num primeiro momento, principalmente nas duas primeiras temporadas, Adam é o Adão do Paraíso Perdido, contudo, na última temporada, há uma reviravolta em sua mente e ele passa a ser o novo Adão do Paraíso Reconquistado, ou seja, uma imagem do próprio Cristo.

O primeiro Adam de Dark — assim como o primeiro Adão de Milton que julgava ser culpa do Arcanjo Miguel sua expulsão e de sua esposa Eva do paraíso — pensava ser culpa de Mikkel a existência do loop que havia prendido a todos naquele inferno existencial. Entretanto, é o segundo Adam percebe que a semente dos dois mundos não é Mikkel, mas ele e Eva. É nesse exato momento que Adam deixa de ser o Satã de Milton e passa a ser o segundo Adão que traz a redenção ao primeiro. Como Adam e Jonah não apenas dividem a mesma natureza, mas são exatamente a mesma pessoa, vemos que o Cristo da humanidade, ou seja, nosso libertador, é o homem em si, não mais o Deus conosco.

A busca pelo paraíso também é algo constante na série. Durante as duas primeiras temporadas vemos diversas personagens falando sobre uma vontade de chegar até ele, mas é apenas na terceira temporada que temos um vislumbre do que é a real concepção de paraíso na série. O lugar onde não haverá mais dor, sofrimento ou lágrimas é um não-lugar, uma não-existência. É a morte o descanso final do ser humano, o paraíso onde seremos livres de tudo, inclusive de nossa própria existência. Parafraseando C. S. Lewis em Os Quatro Amores, o único lugar onde podemos ficar livres de todos os males da vida é a morte. Viver é ser vulnerável.

Assim como no Paraíso Reconquistado e nas Sagrada Escrituras, em Dark é o segundo Adam que traz a redenção ao primeiro. Porém há aqui uma curiosa subversão da mensagem evangélica aqui, porque, diferentemente do que muitos possam pensar, há uma personagem “divina” na história. Adam não traz a redenção por não existir Deus nenhum, mas porque o deus existente é fraco demais para isso. A figura de Deus é representada, na série, por Tannhaus, o relojoeiro. É ele o responsável pela existência do mundo de Adam e o de Eva. Contudo, ele não os criou propositalmente, mas acidentalmente. A existência seria, portanto, um acidente e, sendo um acidente, não tem sentido. Justamente por isso que ela é um loop eterno, um Eterno Retorno. O começo e o fim se conectam por que não há nada antes do começo, nem depois do fim. A única forma de redimir-se nesse mundo cíclico e sem sentido, a única maneira de encontrar descanso eterno, é na morte.

A figura do relojoeiro é, provavelmente desde Cícero, comumente utilizada como analogia à existência de Deus: se um relógio é encontrado perdido em uma praia, nosso primeiro pensamento a respeito do relógio, não é imaginar que ele surgiu por mero acaso, mas que alguém o criou; afinal, se existe um relógio, deve, portanto, existir um relojoeiro. Um ponto interessante em para ser observado em Dark é que nunca vemos Tannhaus construindo o relógio de Charlotte. Preste atenção: quando Charlotte, juntamente de sua filha, sequestram seu eu mais novo e o deixam com Tannhaus, ela deixa também o relógio que ele dará para Charlotte quando ela estiver mais velha e, assim, as coisas se repetirão infinitamente. O fim e o início do relógio se encontram eternamente, ou seja, a criação é, de fato, um simples acaso que acontece repetidas vezes. O relojoeiro, em Dark, não é um criador soberano, mas, assim como “sua” criação, ele é um simples acaso.

Dark é, no final das contas, um reflexo do imaginário popular, um espelho que reflete o que de fato acredita nossa sociedade secular. A cosmovisão que tem guiado as pessoas é aquela trazida pelos teólogos da morte de Deus. É a teologia radical que tem fornecido suas lentes à sociedade para que ela enxergue o mundo. No lugar da teodiceia, ou seja, da resposta à pergunta se Deus é bom, por que existe o mal?, foi colocada a antropodiceia. Não mais uma tentativa de justificar a existência de Deus com a existência do mal, afinal, Deus está morto e nós somos os responsáveis por sua morte. Agora, a tentativa é justificar o fato de um homem que pode fazer muitas coisas boas dividir a mesma natureza com o mesmo homem capaz de pensar em algo como os campos de concentração nazista, os gulags e o genocídio armênio. Matamos Deus e a teodiceia, agora nos resta a existência sem sentido, nos resta responder a antropodiceia: se o homem pode ser tão bom, por que, então, ele é tão mal?

Diferentemente de nós, cristãos, Dark — assim como boa parte da produção cultural e intelectual secular — está respondendo as verdadeiras perguntas que o mundo tem feito. Enquanto estamos preocupados com brigas internas que perduram por centenas de anos, o mundo permanece sem esperanças, acreditando, assim como Adam e Eva, que os principais responsáveis pela redenção da humanidade é a própria humanidade. Nós sabemos que o relojoeiro não é um senhor afligido pelo luto, mas um criador pessoal que, intencionalmente, traz a realidade concreta à existência. Nós sabemos que a vida não é uma mera repetição sem sentido, mas que toda a história caminha para um télos que encontra no seu fim o começo de todas as coisas. Infelizmente, mesmo sabendo dessas coisas, nós permanecemos respondendo, não as perguntas que o mundo tem feito, mas as perguntas que ninguém — com exceção de nós mesmos — está fazendo. Da mesma forma que Dark subverte Milton e a Bíblia, talvez seja útil, para os fins deste texto, subverter Dark e mostrar que não, o fim e a finalidade de todas as coisas não é o paraíso. A finalidade de tudo foi evidenciada no início de todas as coisas, quando nos foi dito que a mulher daria à luz a um menino que feriria a cabeça da serpente. É lá que percebemos o télos da história e vemos que “O começo é o fim e (…)”.

Maurício Avoletta Júnior, 25 anos. Formado em teologia pela Mackenzie e apaixonado por literatura e filosofia. Editor e criador do A Última Casa Amiga, Católico Reformacional, Chestertoniano, Tolkienista, mestre em ser chato e futuramente um “seja o que Deus quiser”.

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Somos uma comunidade de cristãos dispostos a pensar arte, entendendo-a como um ponto tangente, um ponto de contato entre a fé cristã e a cultura.