Pabllo Vittar e sua interação com a cultura Gospel — Parte 1

Evangélicos, Tik Tok e o mercado da Música

Coletivo Tangente
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6 min readJun 19, 2020

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por Hudson Araújo

Pabllo Vittar (Reprodução/Twitter)

Música cristã e música popular tem um grande histórico. Na música americana, o que não faltam são exemplos de grandes astros que tiveram suas primeiras performances na igreja, como o Elvis Presley, Whitney Houston e Katy Perry, isso sem dizer da grande influência do Negro Spiritual, gênero musical interpretado por escravos negros nos Estados Unidos, como formadora do que a música popular se tornou hoje, com ramificações no Gospel, Blues e Jazz, influenciando até hoje gêneros como o Rock, Pop, Rap e R&B.

Porém, aqui no Brasil estamos tomando novas formas nesse sentido. Com o crescimento da Igreja Evangélica e sua influência na cultura, estamos chegando em um ponto, como Igreja, em que não sabemos mais como distinguir o que é uma arte com uma visão de mundo cristã do que é influência da cultura gospel, ao qual aqui me refiro como todo um mercado musical que é reproduzido em cultos de diversas denominações.

Acredito que nada incorpora melhor essa questão do que a repercussão de Pabllo Vittar, com sua música Rajadão.

O cantor Drag Queen já revelou que tem influências evangélicas, inclusive diz que começou “a cantar numa igreja presbiteriana perto de casa”. Em outra entrevista, se diz cristão mesmo tendo atrito com parte da comunidade evangélica. Isso não impediu que o cantor falasse abertamente sobre sua relação com a cultura evangélica, inclusive incorporando essas características em uma de suas composições.

Na faixa que está presente no álbum mais recente do artista, ele entona:

A previsão do tempo diz que o céu fechou

O poder da vitória vai curar a dor

O temporal agora vai cair em mim

A chuva da vitória vai reinar no fim

E quem caiu vai levantar, o povo vai vencer

O sofrimento acabar e o amor vai crescer

Inimigos vão cair com ao som desse trovão

Levanta a mão pro alto e sente o rajadão

A letra poderia (como é) facilmente ser confundida por uma canção gospel: eventos climáticos, palavras de triunfo e a consciência de uma transformação de um estado de dor e sofrimento para uma vitória contra os inimigos. As similaridades não ficam só com as letras, mas com a construção melódica e instrumental, com algo que poderia ser facilmente cantada pela Cassiane e um arranjo crescente que incorpora e potencializa a sensação de vitória.

Todas essas similaridades não são acidentais, já que o Pablo tem ciência da cultura gospel e utiliza dela para passar sua mensagem. As palavras “inimigos” e “amor” são utilizadas para direcionar e apontar todos os medos e desejos da comunidade LGBTQI+. Como nas canções gospel que compõem nosso imaginário deixam muitas vezes lacunas para direcionar nossas batalhas, o compositor da canção achou um terreno fértil para apropriar da fórmula. Resta a dúvida se esse movimento, em uma (boa) jogada de marketing, também não teve o interesse e a intenção de conquistar o público gospel, ou pelo menos parte dele.

Se essa foi a intenção, o resultado foi certo.

A cantora Priscilla Alcântara declarou que gostou da música e citou que a própria Cassiane deveria ver a canção. Priscilla aprovou a música e fez dela “seu novo hino”. O movimento foi recíproco, Pabllo Vittar fez um vídeo cantando uma das canções da cantora gospel e disse que a música falava sobre a comunidade Gay. De novo fica clara a dificuldade de distinguir o que é uma música com uma cosmovisão cristã de uma canção com referências e características do mundo gospel.

Outro fato interessante foi a repercussão da canção nas mídias sociais, mas especificamente no Tik Tok. Caso você não conheça, essa é uma plataforma onde o usuário pode fazer pequenos vídeos com trechos de músicas. A rede é muito conhecida por ser usada por um público bem jovem e por popularizar canções.

Se você procurar essa música na plataforma, vai encontrar, em sua maioria, dois tipos de vídeos: um com pessoas usando vestuaria Drag Queen, e outro simulando um culto pentecostal. Dessa última, muitas delas feitas por gays e evangélicos, é difícil distinguir se o vídeo é um humor de quem está de dentro da cultura gospel, evangélicos, ou do público LGBTQI+. Na verdade, é possível dizer que não há diferença entre essas interações que simulam a manifestação pentecostal, pois a abordagem de cristãos e não cristãos são praticamente a mesma.

Não é raro também encontrar jovens mostrando a música para mães evangélicas e essas aprovando a canção, achando ser um “louvor”. A ùnica coisa que gera estranhamento é a palavra Rajadão, impopular e não comum no linguajar gospel. No Twitter, um jovem mostrou que colocou a letra em um grupo do Facebook de evangélicos, omitindo a palavra Rajadão, e a aprovação foi generalizada.

O que esse fenômeno com a canção do Pabllo Vittar pode dizer sobre a forma como os cristãos interagem com a cultura?

Isso comprova que nós não sabemos diferenciar o que é uma obra genuinamente cristã. Não somos capazes de analisar a visão de mundo de uma obra e compará-la com a visão bíblica. Somos levados por padrões estéticos reproduzidos ou copiados há décadas, que nem sabemos mais quando estamos vendo uma paródia ou uma versão caricata do que acreditamos.

Outro caso comum dessa confusão é na obra de C.S. Lewis e Tolkien. Não era raro nos anos 2000, quando tivemos adaptações cinematográficas dos dois autores, ver cristãos taxando as narrativas como demoníacas por terem bruxos, monstros e seres da mitologia fantástica, sendo que esses dois autores foram o que talvez mais contribuíram para um imaginário cristão, passando uma visão bíblica através de suas obras. Fato que a maior parte do público evangélico não soube distinguir.

Com esse caso específico da música de Pabllo Vittar, vemos algo semelhante: olhando nas postagens do Tik Tok, não há diferença entre o humor dos cristãos e dos não cristão com a música. O problema não é a interação com a cultura, mas a falta de uma exegese da canção para além de sua estética que emula o gospel.

No caso da Priscila Alcântara, ela não só aprovou a canção como não resistiu à isca de ser uma divulgadora da Drag Queen. Não há diferença desse movimento para um não cristão em termos de posicionamento, exegese e resposta respeitosa. O cristão deve ser apto a distinguir a visão de mundo da cultura ao seu redor, se não ele será tentado a simplesmente negar e rejeitar tudo que não tenha a estética padrão, como foi o caso da palavra “rajadão”, ou abraçar completamente pacotes bem embalados com padrões conhecidos.

Isso nos mostra como é importante formamos uma cosmovisão na igreja brasileira, para que não sejamos presas fáceis de artistas que, mesmo que genuinamente e de forma autoral, usam de uma estética gospel. Que possamos ser atraídos pelos artistas não pela familiaridade, mas pelo conteúdo.

Hudson Araujo é redator, revisor e um estudante de letras apaixonado pela teologia e igreja local. Nasceu em Jundiaí, interior de São Paulo, no dia 28 de dezembro de 1995, exatos 100 anos depois da primeira exibição pública do cinema. Coincidência ou não, é fissurado por histórias, estórias e toda forma de arte. Textos, artigos e mais aqui

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Somos uma comunidade de cristãos dispostos a pensar arte, entendendo-a como um ponto tangente, um ponto de contato entre a fé cristã e a cultura.