Redenção e Imaginação: rumo ao último porto

Pedro Dos Anjos
ColetivoTangente
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7 min readMay 19, 2018
Boy Reading Adventure Story — Norman Rockwell (1923)

“Viemos de Deus e, inevitavelmente, os mitos desenvolvidos por nós, embora cheios de erros, refletirão pequenos fragmentos da verdadeira luz, a verdade eterna que está com Deus. Na verdade, somente através da criação de mitos, tornando-se um subcriador e inventando histórias, pode o Homem aspirar ao estado perfeito que ele conhecia antes da Queda. Nossos mitos podem ser desencaminhados, mas eles, de modo trôpego, terminam por nos levar ao verdadeiro porto” — Tolkien. [1]

Vivemos num mundo fantástico. Nosso mundo é um conto de fadas, é a terra média numa jornada a Mordor na companhia de estranhos, a todo momento correndo risco de vida. É um livro de ficção científica de Arthur C. Clarke — o final guarda uma verdade aterradora. Algumas vezes parece um conto de terror de H.P. Lovecraft — “não há esperança diante do mal, só nos resta a loucura” — ou uma distopia clássica, não sabemos se à moda de Orwell ou Huxley. Acima de tudo, esse é um mundo fértil para histórias, onde somos ordenados a produzir cultura. A imaginação é uma benção, apesar de que em algumas vezes e em algumas pessoas pareça que não. Ela está presente nas piores e melhores obras de arte, às vezes acorrentada e subserviente a um tipo de arte propagandística e ideológica ou cruelmente desfigurada em conteúdos imorais e pornográficos. Esse também é um mundo em estado de Queda.

Como artistas cristãos, temos aprendido que a Beleza importa e graças a pensadores como Roger Scruton, essa é uma ideia que vem se popularizando e ganhando força. O que podemos dizer da imaginação e do imaginário? Um tipo de cosmovisão racionalista e materialista, ao longo de alguns séculos, tem reduzido toda a realidade àquilo que é científico, factível, palpável e quantificável, sendo o imaginário visto com desconfiança por esse tipo de mentalidade. Qual seria o papel do artista cristão no meio de tudo isso? Seria o papel de um esteta, apenas? Creio que não.

Há algo de misterioso e exuberante na ação de dar fala e personalidade a animais, dar vida a objetos inanimados, conferir segredos poderosos a eles e capacidades místicas a seus portadores. Existe uma força no conceito jedi de “Força”. Viagens em “velocidade de dobra” para outras galáxias e portais para outras dimensões podem nos trazer um conhecimento mais profundo e mais real do nosso próprio mundo. Monstros e Gigantes não estão muito distantes da nossa realidade, você ainda não desembainhou sua espada?

Esse é um mundo louco demais para ser apenas levado a sério, e é por isso que deveríamos fazê-lo. Em seu livro Ortodoxia, Chesterton, com seu excelente humor, traça um paralelo entre o racionalismo e a loucura, alertando que não é a imaginação, especialmente a mística, o grande perigo para o equilibrio mental de alguém:

“A imaginação não gera insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem; mas os jogadores de xadrez sim. Os matemátcos enlouquecem, e os caixas; mas isso raramente acontece com artistas criadores.”

Em seu Notas da xícara maluca, N.D. Wilson nos fala:

“Dê-me sacerdotes. Dê-me homens com penas no cabelo, ou longos chapéus abobadados, mulheres oráculos em cavernas, pitonisas, fumando erva e lendo mãos. Uma cartomante cigana com uma “tábua ouija” fajuta e um aquário como de bola de cristal sabe mais sobre o mundo que muitos dos grandes pensadores ocidentais […] Eles sabem que o universo transborda de mágica, vida, charadas e ironias. Não ignoram que o mundo pode devorá-los e nenhuma enciclopédia o impedirá.”[2]

O mundo é maravilhoso porque é improvável. Deus fez o impossível, criou todas as coisas do nada, ato que reflete sua capacidade imaginativa, concebendo as complexas estruturas da criação, tecendo a realidade como se fosse um tapete rico em temas, formas, texturas e cores. Detalhes tão cuidadosamente costurados que despertam a desconfiança dos mais céticos ( ou dos mais insanos). Quando tudo parecia ruir, Deus nos deu seu Filho, como o meio pelo qual o mundo seria salvo. O que os judeus chamariam de escândalo, os gentios de loucura e muitos dos críticos de cinema modernos chamariam de “Deus Ex Machina”[3], a Bíblia chama de graça, obra da imaginação suprema de Deus.

Cristãos deveriam ser aqueles com a imaginação mais fértil, pois acreditam e vivem para esse Deus imaginativo, amoroso, verdadeiro e bom. A imaginação é essencial para o cristão comum, mesmo que a Igreja venha a negligenciando ao longo de décadas em sua devoção, que por horas soa fria e distante, e em outras, anti-intelectual e unicamente emotiva. Exercícios comuns na prática cristã como a leitura bíblica, a oração e a adoração em comunidade acontecem porque somos capazes de criar imagens mentais daquilo que nunca vimos ou presenciamos. A imaginação não é só para artistas e poetas, ela foi nos dada para que encaremos toda a realidade à partir de uma cosmovisão cristã que afete nossa maneira de amar, produzir e servir ao nosso próximo, é com a imagem vívida em nossas mentes da meta-narrativa “Criação-Queda-Redenção” que somos capazes de glorificar a Deus com aquilo que pensamos e produzimos. Precisamos de uma imaginação redimida e constantemente santificada, e para isso ele deve estar intimamente ligada à Palavra e capaz de fazer a leitura correta do mundo. Vanhoozer nos diz:

“Precisamos de entendimento prático do evangelho de maneira que nós possamos falar e agir de maneira fiel e ortodoxa em novas cenas culturais. É pelo buscar viver pela Palavra no poder do Espírito que nossas imaginações se tornam santificadas. Eu preciso de uma imaginação santificada enquanto busco a cada dia improvisar minha vida para a glória de Deus.” [4]

O Cristianismo é uma fé que deve ser abraçada por corações fervorosos e mentes ricas em imaginação. Artistas cristãos, portanto, devem se ver livres para, não somente louvar o caráter e obras do Criador de maneira expositiva ou eclesiástica, mas também fazê-lo de maneira mais peculiar e surpreendente, seja o seu trabalho de cunho mais realista ou fantástico. As histórias que contamos através do que produzimos são dignas porque são feitas possíveis por um Deus que nos dá as ferramentas necessárias para criá-las. Histórias e obras de arte importam porque pessoas importam. Como diria Schaeffer, não há gente sem importância e é por isso que além de estarmos livres para produzir conteúdo bom, belo, verdadeiro e imaginativo, devemos estar aptos para fazer uma leitura prudente da realidade e das histórias que são contadas nesse mundo, sendo encorajados a levar toda altivez e todo conhecimento cativo à obediência de Cristo (2 Co 10:5).

Aslam e a Criação de Nárnia

Nossa imaginação e nossas obras de arte não tem o poder de redimir o mundo. Essa é a tarefa de Deus, através do visceral sacrifício de Cristo, obra distinta da imaginação do Senhor, que no Filho, está entoando uma canção que restaura e reconcilia todas as coisas consigo mesmo [6].

Entretanto, embora não sejamos os salvadores desse mundo, somos chamados para contribuir nessa maravilhosa ação restauradora do Redentor, com a pregação e com as nossas histórias, canções, desenhos e demais criações, que mesmo tão imperfeitos e imprecisos, devem apontar o caminho para o Artista Perfeito. Artistas cristãos precisam ser tão comprometidos com o Evangelho que suas obras transpirem amor e serviço à comunidade, a denúncia de pecados e injustiças, a excelência de conteúdo e qualidade técnica e a humildade e submissão à vontade do Eterno. Em um mundo manchado pelas consequências devastadoras da Queda em suas culturas e imaginário, a imaginação de cristãos comprometidos deve ser capaz de promover boas obras que revelem o Criador. Rookmaaker nos estimula a sermos verdadeiramente engajados:

“Como o artista cristão deve cumprir esse papel e pôr em prática essas normas? Ele realmente pode criar o agradável e o belo de uma forma amável para o seu próximo? Trata-se de um chamado a promover o bem e lutar contra o mal, o feio, o negativo; ter fome e sede de justiça; buscar o ‘toque final’ correto, o tom correto, a palavra correta no lugar certo[…] Ele deve ter amor pelas pessoas às quais sua obra se destina, pelo material que usa, pelo tema que escolhe, pela verdade que vai expressar, pelo Senhor a quem está servindo.” [7]

Vá com sua imaginação acorrentada à Palavra, você está se deslocando rumo àquele Último Porto, e enquanto isso acontece, desenvolva e enriqueça a obra dEle. Crie novos mundos, mate dragões e serpentes falantes, abrace o fantástico, construa castelos no ar, use a caneta, o spray, o nanquim ou a aquarela e crie algo que o mundo ainda não viu ou percebeu. Sirva o próximo com suas criações e ame o Deus que as possibilitou existir.

[1] Citação do livro J. R. R. Tolkien de Humphrey Carpenter (Apud Smith, Mark Eddy, O Senhor dos Anéis e a Bíblia. Trad. Emirson Justino. São Paulo: Mundo Cristão, 2001, p.13)

[2] Chesterton, G.K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 24–25.

[3] Deus Ex Machina é um termo utilizado para designar um recurso que aparece em determinada trama, num momento crucial e soluciona de maneira inesperada e mirabolante o problema.

[4] Wilson, N.D. Notasda xícara maluca: Maravilhe-se de olhos bem abertos no mundo falado por Deus. Trad. Josaías Cardoso Ribeiro Júnior. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017, p.29.

[5] https://www.thegospelcoalition.org/blogs/justin-taylor/vanhoozer-on-sanctified-imagination/

[6] A ideia de canção é trazida aqui como uma referência às obras de Tolkien e Lewis, nas quais a criação do mundo está intimamente ligada à música. Em “Silmarillion” (Tolkien), temos o Ainulindalë, a Sinfonia Maravilhosa. Em “O Sobrinho do Mago”, primeiro volume das Crônicas de Nárnia (Lewis) vemos o mundo sendo criado pela canção entoada por Aslam.

[7] Rookmaaker, H. R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Trad. Valéria Lamim Delgado Fernandes. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2015, p.258–259.

Filho. Glauco Barreira Magalhães. Teologia e o imaginário da fé cristã. São Paulo: Editora Reflexão, 2011.

Pedro dos Anjos é Ilustrador e Motion Designer em São Luís, MA. Marido da Suani, fã de literatura fantástica e sci-fi, desenhador de robôs e animais falantes, apreciador de jazz e blues e gaitista meia-boca nas horas vagas. Cristão comum, tentando ficar de olhos bem abertos para a maravilha da criação de Deus pra não deixar passar nada batido. Seu trabalho pode ser visto aqui e aqui.

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