Terroir Cultural

Um reflexão sobre a influência da nossa terra.

Kaiky Fernandez
ColetivoTangente
4 min readAug 2, 2019

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Dependendo do seu nível de interesse gastronômico, você já deve ter ouvido falar na palavra francesa “terroir” (pronuncia-se “terruá”). Se nunca ouviu, bem-vindo ao time. Até pouco tempo atrás, também nunca tinha ouvido, mas um amigo, mais sofisticado do que eu, me falou a respeito, certa vez.

O terroir significa um conjunto de terras que dão a determinado produto características únicas, devido à estrutura do solo, à quantidade de conteúdo orgânico presente nele, às condições climáticas, topografia, dentre outras coisas. Na prática, isso significa que um mesmo tipo de produto (vinho ou café, por exemplo) que é produzido em duas regiões diferentes, vai ter características diferentes em cada uma delas.

Bem.. e se a gente pensasse em um “terroir cultural”?

Ao invés do tipo do solo, a história. Ao invés da topografia, o contexto social. Ao invés de material orgânico, a herança artística dos que vieram antes de nós. Ao invés da temperatura, as festividades, gastronomia e moda típicas.

Sendo assim, nesse país continental que é o Brasil, cada lugar terá seu terroir cultural. Cada cidade, estado ou região terão características únicas que contribuirão para a formação daqueles que neles vivem. Ainda que estejamos em um mundo globalizado, onde a tecnologia “rompe” com as barreiras geográficas e nos permite o acesso à produção cultural de países que estão do outro lado do mapa (fazendo uma analogia, tal qual é o esforço da ciência para adaptar produtos de uma região a outra), seria esnobe da nossa parte ignorar as riquezas que a nossa terra (ou terras, se você é um peregrino) nos dá.

Claro que isso não significa que se você nasceu em Goiás, como eu, precise juntar com outra pessoa e montar um dupla de sertanejo universitário, ou então, se você for um artista visual, tenha que pintar pequi em seus quadros.

Mas significa que você tem a oportunidade de desfrutar de riquezas culturais que um paulista, um gaúcho ou um potiguar não terá. E o mesmo vale ao contrário. Isso não te fará melhor ou pior, apenas diferente.

Vamos fazer uma reflexão rápida:

Imagine duas bandas de indie rock, uma de Goiás e outra do Ceará. Esse estilo não foi criado aqui, mas chegou até nós e é totalmente legítimo que pessoas gostem dele e queiram tocá-lo.

Imagine que ambas bandas utilizem um mesmo sotaque, uma mesma temática de letras, um mesmo estilo visual… Agora, por outro lado, imagine que cada banda terá seu sotaque característico, suas temáticas características, seu estilo visual característico.

Qual seria mais interessante?

E se a banda de Goiás, ainda que seja uma banda de indie rock, fizesse uma música utilizando a sonoridade da viola caipira? E se a banda nordestina tivesse, em algum momento, uma base do repente nordestino?

Obviamente que isso são apenas reflexões. Meu objetivo aqui não é dizer como as coisas devem ou não ser feitas.. Talvez essa mistura do parágrafo anterior nem dê certo. Mas acho que deu para entender aonde quero chegar, né?

Só um exemplo: já ouviu falar sobre o “punk celta”? É o punk influenciado pela cultura irlandesa, escocesa e galesa, o que resultou na inclusão de instrumentos como a gaita de fole, violino ou bandolim, além de letras que trazem elementos folclóricos desses lugares. Tem uma banda que gosto muito desse estilo, que é a Flatfoot 56:

Flatfoot 56 — Brotherhood

Os cristãos são o povo do equilíbrio. Acredito que nessa questão do regional versus o global, há um lugar para nós também.

Por um lado, não podemos ignorar a globalização, as tendências, o que acontece no mundo todo. Se isso for ignorado, corremos o risco de não comunicar com a cultura. Por outro lado, se abraçarmos isso com todas nossas forças, se comprarmos o “pacote” que é oferecido, podemos fazer uma arte pasteurizada e que nada de novo tenha a oferecer.

O mesmo vale para a cultura regional: se ela for ignorada pelos artistas locais, em pouquíssimo tempo vai acabar desaparecendo e ficaremos apenas com as lembranças. Por outro lado, se todos quiserem defender sua cultura local num afã quase bairrista, talvez não haja diálogo e comunicação com quem não pertence a esse meio.

Creio que seja muito importante discernir nossas vocações. Deus chama pessoas diferentes para atuar de formas diferentes, mas todas cooperando para uma mesma finalidade última: Sua glória. Se somos de fato um corpo, é necessário reconhecer que nem todos farão a mesma coisa, do mesmo jeito, com o mesmo objetivo.

No poema “O Nordeste É Poesia”, do cearense Patativa do Assaré, algo muito belo é dito, cujo trecho compartilho aqui para finalizar:

Deus quando fez o mundo
Fez tudo com primazia
Formando o céu e a terra
Cobertos com fantasia
Para o Sul deu a riqueza
Para o Planalto a beleza
E ao Nordeste a poesia

Em qual terra você nasceu, cresceu e está dando frutos? Qual a influência dela sobre isso?

Espero que essa simples reflexão traga luz sobre a forma de enxergar nossa cultura. Sem desprezá-la. Sem idolatrá-la. Sendo equilibrados e conscientes.

Que Deus nos abençoe!

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