The Suburbs: Arcade Fire e o Significado Na Cidade

Bruno Maroni
ColetivoTangente
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16 min readSep 26, 2020

Disco seminal da banda completa 10 anos e segue como confissão da nossa busca por conexão e sentido nas paisagens urbanas que atravessamos e que atravessam a gente.

Antes de começar a ler, uma dica preciozíssima: vai lá no Spotify ou alguma plataforma de streaming que você curte e coloca The Suburbs pra tocar! :)

Em 2020, musicalmente falando, temos muita coisa boa pra celebrar. Além das inspiradoras novidades que aparecem de semana em semana, muitos álbuns essenciais que integram o cânon da música pop comemoram nesse ano décadas de aniversário, datas significativas tanto para os que vieram a público há meio século, ou para os jovens clássicos de 10 anos atrás, caso do nosso personagem aqui: The Suburbs.

Esse é o terceiro trabalho de estúdio da banda de indie-rock (claro, descrevendo bem “por cima”) americana-canadense, Arcade Fire, lançado em 2 de agosto de 2010 pela Merge Records. Esse disco marcou a transição do grupo da cena alternativa canadense (que aliás, ali no final dos 1990 e início dos 2000 se mostrou muito frutífera, lançando bandas como New Pornographers e Broken Social Scene) até o grande público.

Afinal, com The Suburbs o Arcade Fire assumiu o posto de headliner de grandes festivais internacionais e, notavelmente, venceu prêmios “estranhos” a artistas previamente às margens do mainstream, inclusive a 53a edição do grammy, na categoria de álbum do ano. Pra você ter ideia, nessa ocasião Eminem e Lady Gaga estavam na disputa (com, respectivamente, Recovery e The Fame Monster). O disco foi bem recebido pela crítica, foi sucesso de vendas (vendeu mais de 1 milhão de cópias) e de audiência (alcançou o topo das principais paradas, até da Billboard). Mas, claro, o bom desempenho comercial e o reconhecimento crítico, embora sejam bons indicativos do que acontece na obra de arte em questão, decididamente não são o que torna um álbum, neste caso, digno da nossa apreciação e reflexão. De fato, repercussão massiva e boas notas não dão conta do todo que “se esconde” entre as boas músicas.

O Arcade Fire na premiação do Grammy em 2011.

A boa música, além da honestidade criativa, qualidade técnica, capacidade narrativa e afinidade com o ouvinte, faz a gente pensar, ou melhor, repensar onde estamos e o que estamos fazendo. Espera. Melhor ainda: nos faz reimaginar. Particularmente, isso é uma das coisas que mais me atrai na música. Ela exercita, apura e redime nossa imaginação por vias menos óbvias das que nos acostumamos visualmente, por exemplo. Como sabemos, a imaginação recoloca a gente no espaço que estamos, nos deslocando até outras paisagens. A pergunta é: onde você se imagina ouvindo essa música? É tudo sobre lugares. As palavras-chaves do álbum dizem muito: “crianças”, “pais”, “carro”, “cidade” e “casa”. Já reparou que substantivos soltos esclarecem tanta coisa? Bom, por isso estamos aqui com The Suburbs: para reimaginar com o Arcade Fire o que há entre nós (a passagem do tempo e as nossas relações) e as cidades que moramos.

O lugar do Arcade Fire na música pop e o lugar de The Suburbs no Arcade Fire

Mas antes: quem é Arcade Fire? Como eu disse ali encima, com The Suburbs, o terceiro LP de estúdio, o coletivo canadense passou do conglomerado independente e alcançou a aduiência mais ampla, o que não significa que eles se tornaram aquelas celebridades do tipo “todo mundo já ouviu falar”. Ah, tem um outro porém interessante. Apesar de discreto e idiossincrático, a banda teve um começo de carreira intenso. Desde lá do início o grupo foi meio que “abençoado” por gente grande da música. Depois da estreia com Funeral (2005) eles tocaram com David Byrne e David Bowie. O épico Wake Up, desse mesmo disco, tocava enquanto o U2 subia no palco na gigante Vertigo Tour. Isso é muita coisa.

Essas figuras ilustres já denunciam um pouco de onde o Arcade Fire está musicalmente localizado. De modo geral, eles são herdeiros do indie rock dos anos 2000, mas têm desenvolvido essa afiliação com uma abordagem bastante inventiva e por vezes até desafiadora, com referências no chamber e baroque pop da década de 60— aquele tipo de composição pop orquestrada e mais sinuosa. Mas também trazem muito do vigor bruto do post-punk dos anos 70 e 80, do “rock de estrada” americano (Bruce Springsteen) e até música regional haitiana e traços folclóricos medievais. Mais recentemente também incorporaram muito da disco music à estética peculiar da banda.

O Arcade Fire é composto pelo casal Win Butler (vocais, guitarra, baixo e piano) e Régine Chassagne (vocais, teclados, bateria e acordeon), o irmão mais novo de Win, Will Butler (sintetizadores), o virtuoso Richard Reed Parry (guitarra, baixo, piano e percussão),Tim Kingsbury (guitarra e baixo) e Jeremy Gara (bateria)— além das frequentes participações ao vivo de Sarah Neufeld (violino e teclado), Tiwill Duprate (percussão) e Stuart Bogie (saxofone). Na época de The Suburbs o grupo contava também com a colaboração de Owen Pallet (violino e teclado) e Marika Antonhy-Shaw (violino). Pra ser sincero, é muito difícil dizer quem toca o quê no Arcade Fire, já que o coletivo é meio que um amontoado de multi-instrumentistas que adoram trocar de instrumentos entre as faixas do setlist.

Na primeira foto, da esquerda pra direita: Tim Kingsbury, Jeremy Gara, Richard Reed Parry, Win Butler, Régine Chassagne, Win Butler e Sarah Neufeld. Na segunda foto: a banda em performance ao vivo na turnê que seguiu o lançamento de The Suburbs.

Depois da estreia com o aclamadíssimo Funeral sobre morte e juventude, lançaram o alegremente tenebroso Neon Bible, que fala de corrupção política e hipocrisia religiosa (2007), seguido por The Suburbs (2010). Depois lançaram o labiríntico Reflektor, uma mistura de pista de dança com mitologia grega (2013), chegando até o LP mais recente, Everything Now, satírico sobre mídia e propaganda — até aqui, o trabalho com maior resistência crítica na discografia do coletivo (2017).

Agora, muito importante: se ouvir com atenção a trilogia Funeral, Neon Bible e The Suburbs, você vai perceber que uma compreensiva narrativa é traçada. Coloque-se no lugar das personagens das canções. É como se você, com ímpeto juvenil, saísse correndo (de preferência por túneis) do peso de uma vizinhança existencialmente fatigada, entrasse num carro, percorresse a estrada entre as cidades acusando e se indignando com as pretensões e injustiças dos políticos e tele-evangelistas (ansioso por um lugar que você ainda não conhece) e chegasse ao subúrbio, de cara com a vida adulta, tendo que lidar com as crises cotidianas, contemplando (com regojizo e lamento) a história que passou e procurando por significado no aqui e agora — aqui no subúrbio. Então o que há por trás do mundo de The Suburbs?

O mundo por trás de The Suburbs

“O álbum não é uma carta de amor, nem uma acusação, aos subúrbios. É uma carta dos subúrbios.” — Win Butler

Toda obra de arte carrega um mundo em si. Esse mundo que antecede e está na “retaguarda” de sua apresentação enreda desde narrativas pessoais dos artistas, o contexto sociopolítico que eles vivenciam, suas influências estéticas e, talvez o mais decisivo pra tudo isso, o modo que vêem o mundo e a vida e os compromissos que movem essa perspectiva peculiar.

Bem, The Suburbs é bem pessoal, íntimo. O drama tecido no álbum foi inspirado na criação dos irmãos Butler lá na região suburbana de Houston (The Woodlands), Texas, uma das maiores metrópoles dos EUA. A vivência suburbana de Chassagne , na vizinhança de Montreal, onde morava com seus pais, imigrantes haitianos, também tomou parte no conjunto de inspirações para o disco. O insight inicial na verdade foi uma foto que Win recebeu de um amigo de infância. No registro o amigo de Win estava com a filha, na região onde ele o artista cresceram juntos. O vocalista disse em entrevista: “A combinação de ver este lugar familiar e ver meu amigo com a filha trouxe de volta muitos sentimentos daquela época. Eu me peguei tentando lembrar a cidade em que crescemos e tentando reconstituir o máximo que pude lembrar.”. Penso que essa “reflexão instantânea” como impulso criativo para a narrativa do álbum articula as aspirações do compositor. De um jeito ou de outro, toda arte é uma pergunta. E aqui, em The Suburbs, o Arcade Fire procura por significado na cidade.

O que motiva a gente durante o caminho de maturidade que seguimos nas paisagens urbanas que habitamos, com frequência menos harmônicas do que gostaríamos? Memórias de uma juventude irreversível? Agendas mecânicas? A busca por progresso e estabilidade? A sobrevivência conformada? Ou a esperança por um horizonte redentor?

Essas questões que despertam as canções no percurso do álbum. Apesar dos insights bastante íntimos que “dispararam” as composições, The Suburbs eminentemente universal. Não são “os subúrbios do Texas” ou “os subúrbios do Canadá”: são, simplesmente “os subúrbios” (no plural, um plural genérico). Pense nisso: todo desenvolvimento econômico e tecnológico que “puxa” nossa sociedade acaba discriminando contextos, ou seja, mostrando que as coisas muda dependendo do espaço. Mas, ao mesmo tempo, muito se assimila de um lugar pro outro — até as cidades e subúrbios. É isso que, cordialmente, aproxima o ouvinte do cenário do artista. Para o crítico Ryan Leas, da Stereogum, a própria “falta de especifidade é quase parte do conceito […] É como uma infância comum americana transformada em fábula universal”, que emoldura cidades em branco à espera de histórias (nossas histórias) que a preencham.

A concepção da capa de The Suburbs diz muito sobre o mundo por trás do álbum. Criada por Caroline Robert e Vincent Morisett, a imagem apresenta um Mercedes Benz 280 1979 de frente para a foto projetada de um subúrbio. Para a composição da foto e capa, os designers e a banda exploraram as paisagens entre a cidade natal de Régine e Will. Investigaram The Woodlands, onde viviam os irmãos Butler, em busca de um clima “atemporal e familiar”, disse Morisett em entrevista.

Na música (e em outras artes), os compromissos, dilemas pessoais, percepções de contexto e aspirações do artista são esteticamente vinculadas a influências líricas e sonoras que potencializam a reflexão guardado na obra. Alías, não existe cultura pop sem tradição. Quem o Arcade Fire ouviu pra fazer The Suburbs? Antes do lançamento, a banda disse em uma entrevista que o disco seria uma mistura de Neil Young com Depeche Mode. E é bem isso. The Suburbs, eu diria, é musicalmente mais amplo que seus antecessores. É meio rústico, meio orquestral e meio eletrônico. Além de Young e Depeche, a gente encontra também tons de Bruce Springsteen (principalmente no uso simbólico do “carro”) e U2, que desde o início da carreira influenciaram o apego do grupo àquele som de arena, pra cantar eufóricamente de braços erguidos. A gente se depara também com um punk mais opaco e, mais pro final, promenores marcantes da new wave. Mas como essas referências se desenrolam no drama cantado? Agora chegamos ao mundo de The Suburbs, exposto no registro em si.

O mundo de The Suburbs

Esta é a parte pra falar sobre os temas e humores do disco. A faixa título, que abre o trabalho, logo coloca a gente no mapa metafórico do alábum e declara o que encontramos ao longo dele. É sobre envelhecimento, sobre a maturidade e tudo que vem junto nesse percurso. A ideia é que, à medida que amadurecemos, pisamos em (ou rodamos por) solos distintos. A canção começa: “Nos subúrbios eu/Eu aprendi a dirigir”, como metáfora para “crescer”.Num vocal emotivamente contido, coberto por um piano acolhedor, violão suave e uma orquestração discreta (com convidativo trabalho de bateria e baixo também), Win canta: “Sob o viaduto/No estacionamento ainda estamos à espera/Ele já passou”, e continua “Então, tire os pés do chão quente (juventude) e coloque na grama (maturidade)/Porque já passou”.

Em 2011 o diretor Spike Jonze lançou o curta “Scenes From the Suburbs”. A história se passa em uma distopia suburbana marcada por um Estado policial repressivo e narra a história de Kyle, adolescente que tenta recordar memórias da juventude e as mudanças que aconteceram em sua amizade com Winter. O clipe posterior de The Suburbs foi feito com trechos do curta. A parceria Spike Jonze e Arcade Fire se repetiu alguns anos depois, em 2013, quando a banda colaborou com a trilha do ótimo Her.

Da forte fragilidade de “The Suburbs”, chegamos à pulsação de “Ready to Start”. É como se fosse a E Street Band tocando Joy Division. O ímpeto instrumental, com linhas de baixo bem demarcadas, guitarras intermitentes, synths ruidosose batidas corridas, tecem as linhas de outro confronto da vida adulta na cidade: a pressão financeira e a sobrecarga de trabalho, que deixam a gente confuso entre a adequação/conformismo e a vocação/autenticidade. Butler canta: Agora estou pronto pra começar/Se eu estivesse com medo/Eu iria/E se eu estivesse entediado/Você sabe que eu iria/E se eu fosse seu/Mas eu não sou/Agora estou pronto pra começar.

“Modern Man” devolve uma sonoridade mais pacífica e folk (meio Tom Petty). “Então eu espero na fila, sou um homem moderno”: na música, a “fila” é uma figura para a cultura de consumo, e evoca a ideia de que na vida moderna nas cidades ficamos sempre aguardando alguma coisa, mas… no fundo, “Algo não parece certo”. Por isso o personagem quer sair do “conforto sem sentido” da vida moderna e “Quebrar o espelho do homem moderno”. E falando em “quebrar coisas”, a faixa seguinte, “Rococo” remete á idiossincrasia típica das primeiras composições do coletivo. Com ironia entremeada em arranjos orquestrais, a música questiona os modismos da juventude e das utopias descoladas da realidade . A faixa serve como ponte para a estridente Empty Room, com violino disparado e belíssima condução vocal de Régine Chassagne. Aqui se fala sobre como é difícil viver em comunidade — e como a gente precisa disso. Ela canta, Quando estou sozinho/Eu posso ser eu mesmo”, mas no fim confessa: “Toda a minha vida é com você”.

E agora de volta ao rock mais rudimentar com “City With No Children”, com toques de rockabilly. Win canta: “Sinto como se estivesse vivendo em/Uma cidade sem crianças nela/Um jardim deixou se arruinar por um bilionário/Dentro de uma prisão privada”. A “cidade sem crianças” é metáfora pra uma paisagem em que a vida foi sugada, e onde a alienação briga contra a vitalidade. Como o próprio Win explicou em uma entrevista: “Por um lado, você tem muita pressão para fazer parte de uma sociedade comercial e todos estão tentando vender algo pra você o tempo todo. E então, do outro lado, há esse tipo de modernidade que tenta encontrar o que é legal, mas que também tem um certo vazio associado”. Ele canta: “Sinto como se estivesse vivendo em/Uma cidade sem crianças nela/Um jardim deixou se arruinar por um bilionário/Dentro de uma prisão privada”.

Half Light I aparece com uma delicadeza comovente e empática, mesclando sutilmente a progressão de cordas do pop barroco com o brilho de uma balada anos 50. Parte da maturidade é enxergar as coisas (a cidade) sob nova luz. Essa música é sobre isso. “Estranho como a meia luz/Pode fazer um novo lugar. A faixa seguinte é par de Half Light I, Half Light II (No Celebration). Aqui a dupla influência Neil Young-Depeche Mode fica bem evidente. A música pulsa com guitarras em reverb e sintetizadores crescentes, criando uma parede sonora intensa. O narrador fala de crise financeira (pensando sobre o colapso econômico lá de 2008, que teve muito a ver com os subúrbios, inclusive) e da tecnologia que toma o cotidiano da cidade, meio que lamentando a perda do que é “orgânico”.

Oh, esta cidade mudou muito/Desde que eu era criança/Oro a Deus pra que eu não viva para ver/A morte de tudo o que é selvagem — Half Light II (No Celebration)

A inicialmente melancólica “Suburban War” (mexendo com o vocabulário da faixa-título) dá de cara com os contrastes da cidade: elas prometem progresso, mas divide as pessoas, “Esta cidade é tão estranha/Eles a construíram para mudar/E enquanto estamos dormindo eles rearranjam todas as ruas”. A crescente a de bateria no final vale a música toda! Voltamos ao punk (polido) em “Month of May”, a faixa mais “raivosa” do registro, que critica a apatia. Win canta: “Eu sei que é pesado, eu sei que não é leve/Mas como você vai erguê-lo de braços cruzados?”. “Wasted Hours” tem cara de fim de tarde no alpendre (com um café), nostálgica, mas com lembranças despreocupadas, em sintomia com a leveza do instrumental — “Horas desperdiçadas, que você fez novas/E transformou em/Uma vida que podemos viver”.

“Deep Blue” é o indie rock mais uniforme do disco. O título faz referência ao computador da IBM que em 1996 derrotou em uma partida de xadrez o virtuoso Garry Kasparov. Soa como mais um lamento da tecnologia que sufoca a criatividade. A canção tem versos fortes, como, “Nós assistimos o final do século/Comprimido em uma tela minúscula” e “Coloque o celular de lado por um tempo/Na noite há algo selvagem” (é interessante como em The Suburbs a “noite” e o “escuro” expressam liberdade, não prisão — talvez seja a ideia de as luzes modernas, das telas e cidades, se tornam cansativas e sufocantes?).

“We Use to Wait” chega com pianos palpitantes (parece Supertramp!), bateria no contratempo e guitarras em stacatto, imprimindo ansiedade logo nos primeiros segundos. Afinal, a vida na cidade é pressa ou monotonia? Ou será que a nossa experiência do tempo que ficou descompassada? “Eu costumava dormir à noite/Antes das luzes piscantes se infiltrarem no meu cérebro”, “Parece estranho/Como costumávamos esperar as cartas chegarem/Mas o que é mais estranho ainda/É como algo tão pequeno pode te manter vivo”. Penso que aqui está uma das letras mais contundentes do disco.

“Agora, nossas vidas estão mudando rapidamente/Espero que algo puro possa durar” — We Used to Wait

“Sprawl I” (Flatland) é arrastada, um suspiro doloroso, a procura por um prédio que a cidade já demoliu. Mas é uma preparação apropriada para a elétrica (e brilhante, em todos os sentidos) Sprawl II (Mountains Beyond Mountais), uma das mais notáveis faixas do álbum e até de toda a discografia do Arcade Fire.

Batidas demarcadas que explodem em arpejos sintetizados e pianos dançantes (à lá Heart of Glass, hit oitentista da Blondie) suportam os belíssimos vocais de Régine que reflete sobre a onipresença dos shoppings e das luzes. É uma música sobre ser estranho num lugar estranho, meio que “qualquer ou um desajustado”. A letra remete à trilogia Sprawl, do autor de ficção científica William Gibson, que imagina uma urbanização infinita, o que hoje já visível. Pra protagonista da história, isso é claustrofóbico. É difícil identificar uma traução precisa para “sprawl”, mas no contexto de The Suburbs tem a ver com a “expansão” ou “progresso” desenfreados, desmedidos. Conforme Ellen Johnson escreveu recentemente para a Paste Magazine, Sprawl II é “como um grande filme sobre a maturidade, de alguma forma encapsula tudo sobre crescer, perseguir sonhos e sobre dor que tantos de nós sentimos quando imaginamos uma vida em algum lugar além de nossos mundos aparentemente pequenos.”.

Arrisco dizer que essa música é um “hino” à aspiração de significado na vida na cidade. É o auge narrativo de The Suburbs, que antecede a derradeira The Suburbs (continued), que retorna à faixa de abertura.

“Às vezes me pergunto se o mundo é tão pequeno/Que nunca podemos fugir do progresso/Vivendo no progresso/Shoppings mortos se levantam/Como montanhas atrás de montanhas/E não há fim à vista/Eu preciso da escuridão, alguém por favor apague a luz” — Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)

O mundo em frente The Suburbs

Todo álbum, mesmo que não conceitual (ou seja, com um eixo temático e narrativo muito bem delimitado, como o que conversamos aqui), além de um mundo “escondido” por trás de suas composições e outro confeccionado nas canções em si, “lança” um mundo pra frente, projeta-o imaginativamente. Como eu disse lá no início, imagens de mundo são convidativas.

Um bom disco sempre propõe perguntas, nem sempre dá respostas (ainda bem). Mas respostas do público são inevitáveis, isso caso a gente reconheca com honestidade e um senso de gratidão o que uma obra de arte nos oferece. No encontro do artista/banda com o ouvinte, um diálogo se estabelece. Na verdade, um diálogo de espiritualidades. Podemos dizer que as pessoas compõem espiritualidades em resposta ao que acontece no mundo, algumas apreendendo-o com mais clareza e virtude que outras. O ponto é que aspirações espirituais são inevitáveis. Considere Sprawl II, por exemplo. A música progride em uma procura por sentido em meio às expectativas urbanas. Isso, de fato, sintetiza a procura que perpassa o álbum.

O crítico Marcelo Costa escreveu no blog Scream & Yell: “Um sentimento de dualidade paira sobre as metrópoles. Muitas vezes, de forma ilusória, elas integram o ser humano no tempo/espaço da história ao mesmo tempo em que criam uma sensação de guerra particular, em que o inimigo — de forma maximizada — pode ser, no final das contas, você mesmo (a), como se ruas, avenidas e grandes construções fossem nada mais do que um espelho para narcisos indecisos”. Isso é desafiador. A saber, porque o problema das cidades e da sociedade como um todo, somos nós mesmos. E se o impasse para experiência de sentido nos subúrbios é esse, a redenção está em nós, estranhos vagando pelas ruas e avenidas à procura de amor e propósito num cenário impaciente, consumista, excessivo e exaustivo. Mas que guarda beleza entre seus danos.

Por que quero uma filha, enquanto ainda sou jovem/Eu quero segurar sua mão/E mostrar alguma beleza/Antes deste dano ser feito. — The Suburbs

The Suburbs faz a gente pensar sobre sim, sobre urbanização, mas, especialmente, sobre a nossa experiência nas cidades. Desperta também reflexões sobre família, trabalho, memórias, amizade, tecnologia e tempo. Asfalto e grama. Amizade e distância. Telas e luzes. Passado e presente — e futuro. Juventude e vida adulta. Selvageria e artificialidade. Pressa e monotonia. Onde estamos, e como vivemos o ritmo de onde moramos? Quando ouço The Suburbs, lembro muitíssimo de Tish Warren Harrison e seu “Liturgias do Ordinário” (ela inclusive cita o Arcade no livro!). Falando sobre espera, ela diz: “Aqui no trânsito, quando estou presa no meio-tempo, não estando nem de onde eu vim nem para onde eu vou, eu resido no ritmo litúrgico que pratico ano a ano: esperar e ter esperança. Minha realidade presente está fundamentalmente orientada pelo que está por vir. Eu estou a caminho”. Nos subúrbios, estamos a caminho.

A cidade é uma estrutura social intrinsecamente positiva com um passado diversificado e um lindo futuro. […] Para o nosso crescimento espiritual e bem-estar contínuos, talvez precisemos da cidade mais do que a cidade precisa de nós. — Timothy Keller (Igreja Centrada)

Precisamos reconsiderar o impacto das nossas histórias e experiências na formação das cidades, mas também como a cidade nos forma. Se mover entre essas ruas requer cultivo e imaginação. Nisso reside a beleza de The Suburbs, um convite à reimaginar o dia a dia nos horizontes do nosso dia a dia.

A banda em performance de The Suburbs e Ready to Start no festival de Glastonbury em 2014, época da turnê que sucedeu o lançamento de Reflektor.

O álbum em poucas faixas: The Suburbs, Ready to Start, We Used to Wait e Sprawl II (Mountain Beyond Mountains).

Pra quem curte: indie rock, chamber pop, soft rock e new wave.

Para conhecer a banda: Wake Up (2004), Intervention (2007), Afterlife (2014) e Everything Now (2017).

Escute o disco na íntegra no Youtube e em todas as plataformas de streaming. Ah, e depois compartilhe sua experiência com a gente! :)

Sobre o autor

Eu, Bruno, sou jundiaiense, tenho 23 anos e sou noivo da Larissa. Em 2019 me formei teólogo pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, sirvo na equipe pastoral da Comviver Jundiaí, igreja batista, e trabalho como editor no Ministério Razão Para Viver. Atualmente sou aluno no programa de tutoria do Invisible College e recentemente me especializei em jornalismo cultural. Estudo espiritualidade e cultura, cosmovisão cristã e teologia pública, arte e cultura pop. Escrevi o livro Cristianismo & Cultura Pop (Box95/Charpentier), e colaboro nas redes do Coletivo Tangente e do IACA Brasil. Além de música, gosto de livros, séries, pizza e tartarugas aquáticas.

Você pode me encontrar e acompanhar lá no Instagram: @bm_aoquadrado.

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Bruno Maroni
ColetivoTangente

Marido da Lari e pai do Tim. Teólogo, jornalista cultural (improvisado) e escritor em formação. Gosto de livros, discos, pizzas e tartarugas.