Um chamado ao serviço no mundo

Uma Crítica ao Dualismo Evangélico

Zé Bruno
ColetivoTangente
4 min readMay 23, 2018

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Minha conversão se deu no ano de 1996, desde aquela época era comum ouvir que crente não ouve música do mundo, tampouco vai para shows. Até os shows evangélicos eram vistos por boa parte da liderança como algo mundano. Não foram poucas as ocasiões em que presenciei repreensões aos que iam a estes eventos. Complicado mesmo era para os artistas que se convertiam ou que já eram cristãos, pois precisavam abandonar a carreira dita secular e se envolver no mercado gospel, afinal se fosse artista e crente não podia trabalhar “no mundo”.

Essas convicções não são cristãs. Apesar de usarem o discurso da santidade como justificativa para tais resoluções, isto nada tem a ver com ela. Santidade não diz respeito a uma lista de proibições. Mas se refere à obra que Deus fez e está fazendo em nós através do seu Espírito e da nossa resposta obediente a sua vontade revelada. Como cristãos somos chamados a glorificar a Deus para além da vida eclesiástica, logo a vida santa está na relação ordinária da vida: varrer a casa, lavar os pratos, assistir um bom filme, sentir o cheio de um perfume, preparar uma refeição ou comê-la, jogar videogame etc.

Por trás da dicotomia “sagrado ou profano”, “da igreja ou do mundo”, “gospel ou secular” está o dualismo. Uma ideia pagã que remete ao gnosticismo, o qual via a matéria como algo ruim e o espírito como algo bom. E a partir disso fragmenta a realidade, limitando a soberania de Deus a uma parte da criação e entregando a outra ao diabo. O dualismo evangélico diz que oração, igreja, pregação e louvor são coisas de Deus, porém meio-ambiente, política, ciência e arte, não. Daí a omissão cristã nestas áreas ou a paupérrima contribuição evangélica nacional nestas esferas.

Bem na contramão disso está Abraham Kuyper, pastor e primeiro ministro da Holanda, que atuou em várias áreas da sociedade contribuindo com excelência para glorificar a Cristo em cada uma delas, pois conforme ele mesmo declarou:

“Nem um único espaço de nosso mundo mental pode ser hermeticamente selado em relação ao restante, e não há um único centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano em tudo, não clame: é meu!”[1]

O que Kuyper afirma com esta declaração é que não há dualismo, já que não existe algo em toda criação que não pertença a Deus, o Criador ou a Cristo, o Senhor.

Aí está o principal problema do dualismo: ele não é real. Só existe na realidade como uma visão de mundo, um ponto de vista apenas e nada mais. Neste caso ou Deus é soberano ou o dualismo é real, não há como coexistirem, pois, são excludentes entre si. Não obstante o que encontramos e claramente vemos é a dualidade: bem e mal, noite e dia, luz e trevas, justo e injusto.

O dualismo como uma herança do gnósticismo segue o mesmo padrão dele: ser um parasita do Cristianismo. A confusão é feita porque o dualismo superficialmente sugere uma certa piedade ao valorizar as coisas do espirito em detrimento das do mundo. No entanto em um nível mais profundo ele não passa de uma heresia, já que a fé cristã não valoriza aspectos da criação em detrimentos de outros, pois toda criação é muito boa. Além disso tudo é espiritual, afinal tem sua origem em Deus. Logo quando olhamos o mundo que nos cerca não podemos vê-lo como se apenas parte dele pertencesse ao Criador — de modo algum. Este mundo é o mundo de Deus e todo mal que está nele é uma corrupção da sua boa criação que aguarda o dia da redenção, em que Ele fará nova todas as coisas.

Quando em 1996 e ainda hoje os cristãos continuam debatendo sobre música do mundo e música de Deus, que política é do diabo, que a ciência é incompatível com a fé cristã, que o artista que se converter deve abandonar sua carreira para aderir o selo gospel ou que a defesa do meio-ambiente é perda de tempo, por exemplo, eles estão falando não a partir da cosmovisão cristã, mas de seu parasita: o dualismo.

Kuyper, conforme mencionado acima, foi um cristão relevante em sua sociedade porque entendia que o senhorio de Cristo se estende sobre toda a dimensão do cosmos. Cito-o como exemplo, não apenas por ter sido alguém que levou o peso das suas convicções para arena pública, mas porque entendia e defendia que os cristãos deveriam agir assim. Os cristãos precisam contribuir para o mundo com algo que vá além daquilo que só a igreja pode fazer. As pessoas precisam ler um bom livro em alguma área do conhecimento ou ouvir uma boa música ou aplicar alguma técnica cientifica, como dizia Rookmaaker, e serem inspiradas ao saberem que foi um cristão quem a produziu.[2]

Se de fato cremos que Deus é soberano não podemos abandonar o mundo, deixando-o aos cuidados dos filhos das trevas, mas precisávamos nos engajar em todas as áreas, arregaçar as mangas e trabalhar, pois quando assim fazemos estamos cooperando com Deus naquilo que Ele está fazendo em seu mundo. Ou nas palavras de Kuyper,

“se o Deus do crente está trabalhando neste mundo, então neste mundo a mão do crente deve se apossar do arado, e o nome do Senhor deve ser glorificado nesta atividade também.”[3]

Naquele que nos chama para sermos suas mãos e seus pés no mundo,

Zé Bruno

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Notas

[1] CARVALHO, Guilherme. O senhorio de Cristo e a missão da igreja na cultura: A idéia de soberania e sua aplicação. In. RAMOS, Leonardo. CAMARGO, Marcel. AMORIM, Rodolfo (Org.). Fé Cristã e Cultura Contemporânea: cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral. Viçosa, MG : Ultimato, 2009. Capa.

[2] ROOKMAAKER, Hans. A Arte não precisa de justificativa. Viçosa: Ultimato,

[3] KUYPER, Abraham. Common Grace: God’s gifts for a Fallen World, Vol.1. Bellingham: Lexham Press, 2015, Kindle posição 594.

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Zé Bruno
ColetivoTangente

Criado maior do que os animais e um pouco menor do que os anjos, mas de glória e honra coroado. www.zebruno.wordpress.com