O que é feminismo interseccional?

Natália Barchet
Coletivo Unas
Published in
4 min readMar 1, 2018

A quarta onda do Feminismo é marcada pela existência concomitante de várias vertentes dentro do movimento, cada uma analisando a realidade política, social e econômica da mulher a partir de perspectivas e fundamentos próprios. Uma dessas vertentes é chamada Feminismo Interseccional, que se caracteriza por realizar recortes que nos permitem olhar a mulher sob o ponto de vista do coletivo e também individualmente, respeitando as opressões específicas que cada pessoa sofre devido a sua condição social.

Entendemos que todos as mulheres sofrem a opressão de gênero — o machismo — e que a ela somam-se as opressões individuais, que nem todas as mulheres igualmente sofrem, como racismo, gordofobia, maternidade compulsória, capacitismo, lesbofobia, bifobia, opressão de classe, entre outras muitas. Respeitamos que cada pessoa vive a realidade de forma diferente, lidando com as opressões que lhe atingem e se distanciando daquelas que desconhece, dessa forma adquirindo autoridade para ensinar e opinar sobre as opressões que sofre na pele.

Uma mulher branca de classe média, por exemplo, certamente pode falar com propriedade a respeito do machismo, mas não possui tanta autoridade ou espaço para falar sobre racismo — mesmo que estude a respeito do assunto, uma vez que a leituras sobre uma opressão não se compara à vivência dela. A isso damos o nome de protagonismo, o respeito ao espaço de fala que cada pessoa adquire por conta da realidade que experiência. Isso não significa que somente quem passa por uma opressão têm direito de falar sobre ela, e sim que devemos respeitar a prioridade daquelas pessoas que possuem mais conhecimento e autoridade. Quando uma mulher gorda, então, exige ser protagonista na luta contra gordofobia, é porque não quer ver sua vivência sendo representada por mulheres magras ou não-gordas que falam do assunto apenas com base em estudo. O feminismo interseccional, então, respeita e reconhece a diversidade de opressões e lutas e preza pelo protagonismo e espaço de fala dentro delas.

Quando se fala em intesec, existe o erro comum de acreditar que nós nos aproximamos ao Feminismo Liberal. A realidade é justamente o contrário: Nós o criticamos pesadamente. O LibFem busca o empoderamento feminino dentro do sistema capitalista, enquanto nós reconhecemos que esse sistema sobrevive através da exploração de todos os grupos minoritários e que, para que se consiga uma sociedade com equidade, é preciso um sistema que não se baseie na exploração de muitos em detrimento do sucesso de poucos. O Feminismo Liberal tende a permanecer nas pautas do empoderamento individual, enquanto o Interseccional pode ser descrito como uma espécie de árvore, reunindo dezenas de pautas que se conectam.

Esse erro de comparação costuma acontecer porque ambas as vertentes lutam pelo direito de livre escolha da mulher, mas a semelhança para por aí, pois as definições que temos de “escolha” são muito diferentes. Para o intersec, ser a favor da livre escolha pessoal não significa neutralidade a respeito de assuntos sérios. Temos posições claras a respeito de aborto, heteronormatividade, performance de feminilidade, maternidade, patriarcado, prostituição, entre outras; opiniões críticas em sua maioria, mas não nos vemos no direito de cercear a liberdade de uma mulher que — uma vez consciente de toda a estrutura que a oprime e de tudo que apoia através de suas ações — escolhe livremente deixar de lado ou prosseguir com algumas práticas.

O feminismo interseccional busca ser didático ao explicar e criticar todas as formas de opressão, e também entende que obrigar uma mulher a uma prática que ela não deseja é simplesmente incorporar o tão criticado papel autoritário dos homens e do patriarcado. Uma pessoa que não se depila, por exemplo, não possui direito algum de impor isso aos outros. Podemos explicar de que forma a depilação simboliza a infantilização da mulher e contribui para o controle das nossas mentalidades, mas não podemos de forma alguma criticar alguém por escolher seguir removendo seus pelos, ou usando maquiagem, relacionando-se com homens, enfim. Nós não nos mantemos neutras em absolutamente nenhum assunto. Estudamos, compreendemos e explicamos para que todas as mulheres possam ter consciência do valor social de suas atitudes e, com essa compreensão, escolham por si.

Existe também o argumento falho de que o feminismo interseccional possui relação com o pós-modernismo, argumento esse que se resume em falta de conhecimento sobre a vertente. Não é preciso muito tempo de estudo para entender que feminismo e pós-modernismo são opostos, este inclusive sendo muito utilizado por homens na tentativa de roubar nosso protagonismo e invalidar nossas vivências. A conexão se faz normalmente entre a teoria queer, pós-moderna desde berço, e o transativismo, luta política de pessoas transsexuais que o intersec reconhece e defende.

Nós abraçamos a causa trans? Sim. Isso tem relação necessária com teoria queer? Não. A esmagadora maioria das mulheres transsexuais e travestis nunca ouviram sequer uma menção à teoria queer na vida. Elas são fisicamente violentadas, marginalizadas e invisibilizadas todos os dias, são mulheres pobres, forçadas a abdicar de seus estudos muito novas, e que em sua maioria não tem acesso algum ao academicismo necessário à compreensão da teoria queer. Nós entendemos que transexualidade não diz respeito à imagem, roupas e performance de feminilidade, e sim à biologia e psicologia. Defendemos que é algo sobre o qual as pessoas não tem absolutamente nenhuma escolha, e que mulheres trans não são socializadas como homens, elas são socializadas como erros, como nada. Oprimir uma mulher trans ou travesti pode ser comparado à oprimir uma pessoa LGBT+: ambas nasceram assim e nenhuma é inferior por isso.

O feminismo interseccional é um dos mais fáceis de compreender, pois justamente respeita que uma grande parcela de mulheres é privada do direito à educação de qualidade e do tempo necessário para se dedicar a estudos teóricos, que se afastam das suas realidades. Assim, nossa luta se faz através da didática, levando o acesso a informação de qualidade para todas e garantindo que cada dia mais mulheres reconheçam o valor e o poder que têm.

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