Como nasceu o Coletivo Yama

Anna Paula Telles Vieland
Coletivo Yama
6 min readJun 19, 2020

--

Trabalho na área digital há mais de 20 anos e alguns colegas têm me perguntado sobre como consigo aliar minha experiência na área de tecnologia com a concepção de produtos e a prática de estratégias de cultura de paz. Foi por isso que resolvi compartilhar um pouco sobre minha trajetória e minha motivação.

Fiz meu primeiro retiro na Índia após sair de uma experiência profissional na qual presenciei e enfrentei conflitos éticos — humilhação com colegas, violência verbal e psicológica. Ali considero o início de uma nova vida; restabeleci o contato comigo mesmo, me deparei com a realidade, com um mundo de verdade, e aprendi a contemplar a vida e o ser humano. Voltei valorizando cada nascer do Sol, cada vez que sentia o ar entrar em meus pulmões, cada sorriso.

Energias renovadas, parti para um novo desafio profissional, um produto completamente conectado com meu propósito de usar a tecnologia para impactar positivamente das pessoas. Na mesma época, me matriculei em uma formação de professores de Yoga. Foram tempos de êxtase.

Foi então que na formação tive minha primeira aula de ética, com a querida Lia Diskin; fui profundamente impactada e naquele momento entendi que havia subestimado o poder de integração proposto pelo Yoga. Me desconstruí completamente; percebi que a mudança deveria ser muito maior do que a que tinha conquistado até então. Lembro perfeitamente que saí da aula em lágrimas, tantos os conflitos internos que surgiram. Parei pra refletir sobre como estava muitas vezes violentando a mim mesma e minhas crenças, como mesmo sem intenção estava sendo violenta em meus comportamentos, e mais uma vez sobre o que de fato importava na vida. Me conectei com a não violência e ali precisei ressignificar muita coisa.

Logo na sequência, passei a ter um contato mais próximo com estratégias para cultura de paz, dentre elas a Comunicação Não Violenta. Me senti inspirada a me aprofundar nessa linguagem da vida (como Marshall Rosenberg intitula em seu livro), que oferece consciência para o diálogo, uma comunicação corajosa, tendo como base a não violência e a compaixão, trabalha com a valorização dos nossos sentimentos e necessidades humanas básicas, aquilo que nos conecta enquanto espécie.

Com tudo isso, eu que até então me via consumida por reuniões, estratégias e relatórios, comecei a ouvir mais, a oferecer de fato uma escuta de qualidade, oferecer meu estado de presença para as pessoas que trabalhavam comigo, a treinar meu estado de atenção, a me esforçar para ser mais empática com a situação vivida pelo outro e a ter mais cuidado com a construção de feedbacks. Comecei a me preocupar de forma mais intensa em como tocar os seres humanos que trabalhavam comigo e os outros para os quais estávamos construindo aquele produto. Passei a me levantar todos dias refletindo sobre quais seriam minhas ações (dentro e fora do trabalho) e como elas poderiam impactar a vida de outras pessoas.

Em determinado momento entendi o peso da frase: A quem muito é dado, muito será cobrado. Foi assim que tendo mais compreensão do que representa a verdadeira ética e do quanto meus valores significam pra mim, ao me deparar com algumas situações de machismo na liderança e violência psicológica e moral — novamente comigo e com colegas — me vi no dever de não ser omissa, e fui assim arrebatada por um estado de coragem para declarar tudo aquilo que estava vendo e sentindo. Sofri por tudo que deixei, pelas pessoas, pelo produto… mas foi preciso desapegar. O sentimento: de dever cumprido. O aprendizado: ser pacífico de fato nada tem a ver com ser passivo.

Dois dias depois, quando achei que a depressão viria, num momento de inspiração, cheguei a conclusão de que não poderia admitir ver outras pessoas passando por aquilo, de que todos merecem ser tratados com respeito, reconhecidos em sua humanidade, suas necessidades e sua inteligência. Não somos violentos em nossa natureza e sim aprendemos a ser violentos por imitação, gerando uma reação em cadeia; no entanto, temos a capacidade de sermos bons, de manifestarmos o amor verdadeiro.

No fundo, independente do papel que estejamos representando em determinado momento, somos todos seres humanos. Líderes podem ser empáticos, podem demonstrar sua vulnerabilidade, podem ser diretivos sem serem violentos; liderados precisam ser ouvidos, reconhecidos e também podem desenvolver a empatia por seus líderes e colegas — todos pessoas, assim como eles.

O ambiente de trabalho pode ser um lugar saudável que fomenta conexões de qualidade. Era necessário falar sobre isso, falar sobre como as pessoas se sentem em situações de violência no trabalho, na vida, em suas relações com o próximo e consigo mesmo. Compreendi a importância de cada passo da trajetória, de cada pessoa que cruza nosso caminho; e que transformar a cultura de violência em uma cultura de paz requer ação. Para combater a violência é preciso a ação não violenta.

Naquele dia nasceu o Coletivo Yama. Uma iniciativa com base no princípio não violência (Ahimsa), cuja missão seria promover conexões mais gentis, propor uma transformação na maneira como interagimos com o mundo, respeitando as necessidades, a inteligência e a singularidade de cada ser. Cerca de duas semanas depois, Adriano e eu fizemos nossa primeira palestra em um meetup com o tema Human Experience, sobre como ressignificar o papel dos profissionais da área de tecnologia por meio da empatia e da conscientização do impacto que sua atuação tem na vida de outras pessoas.

Como um Coletivo, Andressa, Isabella e Regina chegaram. Pessoas incríveis e com perfis multidisciplinares — talvez não por acaso, todas também da área de tecnologia — com os mesmos valores e unidas pelo mesmo propósito.

De lá pra cá, na busca de me aprofundar, vieram os cursos e imersões em CNV, diálogo, empatia e compaixão. Outros dois retiros na Índia, a pós graduação em Yoga e agora depois de um ano estudando práticas meditativas, uma formação em meditação. Passei a empregar a liderança humanizada, os princípios éticos do Yoga, algumas estratégias como a CNV com todos os times com os quais tenho contato. Um dos depoimentos mais significativos pra mim, foi: “Você trouxe sentimento para a área de tecnologia”.

Em breve completaremos dois anos de existência, levando para pessoas e organizações processos de investigação e estratégias de transformação, promovendo o diálogo como meio de dissolução dos conflitos. Lançamos sementes de ética, não violência, empatia, gentileza, compaixão, gestão de conflitos, comunicação não violenta, propósito, liderança humanizada e felicidade no trabalho.

Temos constatado a grande dificuldade das pessoas em estabelecer empatia, em declarar a vulnerabilidade por medo do julgamento, o escasso vocabulário de sentimentos e necessidades, a dificuldade em lidar com conflitos. O ambiente competitivo instiga a violência e a necessidade de provar todo o tempo de que se está certo. Ser gentil ou reconhecer falta de conhecimento em algum assunto, por exemplo, são sinais de fraqueza. Não é incomum em nossos eventos, o choro engasgado, a compaixão manifestada, a revolta e o inconformismo nas palavras, a curiosidade sobre como fazer diferente.

A cada evento me sinto mais nutrida, fortalecida em meu propósito. Sei que não posso mudar o mundo, mas posso e preciso oferecer minha parcela de contribuição. É essa inquietação que me move. Sou grata pela abertura e confiança de cada um que aceita e se abre para ouvir o que o Coletivo Yama tem a dizer. Sou grata a todos os mestres que me fizeram despertar.

A ação não violenta requer coragem. Coragem para rejeitar a violência, para falar sobre algo que incomoda e que muitas vezes é velado, para dar clareza sobre o que as pessoas precisam, coragem para reconhecer a forma como nos relacionamos, para incentivar o autoconhecimento e a autorresponsabilização das ações e emoções. Coragem para receber julgamentos por ser alguém que se preocupa genuinamente com o que o outro sente. Coragem para quando necessário gerar conflitos com objetivo de promover a sensibilização e o esclarecimento sobre os fatos, o diálogo. Coragem não apenas para falar sobre a não violência, mas para vivê-la, incorporá-la em nosso dia a dia, em nossas relações.

Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou.

(Margaret Mead)

Foto: Cheng Feng

--

--

Anna Paula Telles Vieland
Coletivo Yama

Encorajando conexões mais gentis e fomentando a gestão humanizada para a criação de produtos com empatia e propósito.