Imagine se John Lennon ainda estivesse vivo, ou: “Give Peace a Chance”

Andressa Luz
Coletivo Yama
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9 min readOct 13, 2020
Photo by Iñaki del Olmo on Unsplash

No último dia 9 de outubro, seria o seu 80º aniversário. Ele hoje já seria um respeitável senhorzinho, que talvez precisasse ainda mais dos seus óculos do que como nunca, mesmo com todo seu histórico de miopia.

Ou quem sabe teria feito uma cirurgia. E então deixaria as suas lentes apenas para manter o estilo. Nesses 40 anos em que fomos impedidos de conviver com John, muitas seriam as oportunidades de usar diferentes tipos deles. Armações coloridas, grossas, finas. Mas as lentes sempre redondas.

Estamos em tempos de pandemia e isolamento físico, será que ele faria uma live com a Yoko e o filho Sean, para comemorar a data?

Estaria ele ainda morando em Nova York, cidade que vislumbrou, a amando mesmo antes de se mudar. Seria definitivamente lá onde este inglês finalmente se sentiria em casa?

Famosa foto de John Lennon por Bob Gruen

Ou estaria escondido no meio de uma floresta, uma grande fazenda onde pudesse envelhecer longe dos holofotes, receber seus amigos, descansar e ainda produzir?

Talvez aproveitasse o seu octogésimo aniversário para se pronunciar. Imagino que John não estaria imparcial e calado diante de todo extremismo que assola o mundo.

Quem sabe até estaria em campanha política, por que não? Lutando contra a reeleição de Donald Trump, contra as fake news e tudo que isso representa. Como ele se relacionaria com a internet? Teria um perfil no Instagram?

“Tudo o que estamos dizendo é para dar uma chance a paz”, ele tanto cantou. E pediu para que imaginássemos um mundo sem religiões, nem mesmo países. Sem posses. Sem ganância, nem fome.

É fácil se a gente tentar? Não, com certeza a gente viu que não é. A realidade de um mundo com tanta desigualdade social acaba com qualquer chance de paz. A gente sabe. E aprendeu com muita dor que os anos passam e algumas coisas não mudam.

Talvez nunca vão mudar, se a gente pensar que não. É muito idealista achar isso, sabendo de toda a violência estrutural que a nossa sociedade vive. Mas, imagino que, em 1969, quando John Lennon e Yoko Ono disseram “A Guerra acabou! Se você quiser.” — por meio de espaços alugados em outdoors de 11 cidades espalhadas pelo mundo, numa campanha de Natal para a paz — também estavam falando sobre mudanças internas e individuais. Sobre o nosso próprio processo de desenvolvimento humano.

https://artchive.ru/publications/3347~Yoko_Ono_the_worlds_most_famous_unknown_artist

Também imagino que tudo estaria diferente se ele ainda estivesse aqui. O mundo de hoje precisa tanto de John, seus óculos icônicos e sua voz anasalada. Ele ainda tinha tanto a dizer.

Em 1980, ano de sua morte, o aniversário foi muito celebrado. Eram os 40 e ele estava na melhor fase. Havia voltado a produzir depois de um longo hiato de cinco anos, quando se dedicou à criação do filho, Sean Ono Lennon.

Depois de um tempo conturbado separado de Yoko, ele tomou a decisão de interromper a carreira para, junto da mulher, cuidar do filho. Dessa vez ele havia decidido fazer diferente.

Não havia sido assim com Julian, filho que teve com Cynthia no começo do sucesso dos Beatles. Toda exposição com a fama na histérica época conhecida como Beatlemania, as turnês e o posterior divórcio foram determinantes para o afastamento. Em uma entrevista, Julian chegou a chamar o pai de “hipócrita” por falar sobre paz e amor ao redor do mundo, mas não demonstrar esse amor dentro de casa.

Sim, John não havia sido um bom pai, nem marido. Mas, antes de ser cruelmente assassinado também estava acontecendo uma tentativa de aproximação entre ele e Julian, desde o nascimento de Sean. John havia errado, chegou a ser violento em algumas discussões com a ex esposa Cynthia. A agressividade era apenas um dos conflitos expostos em suas letras, como forma de exorcizar os seus próprios demônios internos.

Mark David Chapman, assassino de John Lennon, revelou que acumulava muita raiva contra os Beatles e, principalmente, contra o fundador do FabFour. Segundo ele, o estopim que motivou o crime foi pela sua contradição de cantar sobre um mundo sem posses, enquanto desfrutava de uma grande riqueza. Seu ódio era também religioso, já que passou a abominar o então ídolo depois que começou a praticar sua religião seriamente.

As letras e declarações do músico, como em 1966 quando Lennon disse que Beatles eram mais populares que Jesus, enfureceram o ex fã, mesmo com o pedido de desculpas público. Havia muito ódio e intolerância para com o pensamento diferente. John cantava que “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, na música God, em que também dizia que não acreditava em uma série de coisas, além de Deus, como mágica, reis, Hitler, Buda, Yoga, Elvis. Nem mesmo nos Beatles. E terminava dizendo que só acreditava nele. Em Yoko e nele. Ou seja, no amor.

https://twitter.com/yokoono/status/1203646517539676162/photo/1

Todo o ódio resultou em Chapman disparando cinco tiros contra John, quando ele chegava ao tão amado Edifício Dakota, prédio no qual morava em Nova York . Quatro tiros o atingiram. Três deles atravessaram seu corpo causando grandes estragos, enquanto uma bala ficou alojada em sua artéria aorta, ao lado do coração. Os projéteis usados tinham pontas ocas, que causam muito mais danos que as convencionais.

Um grande golpe do destino. Ser morto por aquilo que tanto lutava contra: a violência armada. Se John Lennon estivesse vivo, poderia ter dado continuidade às ações como ativista pela paz, pois depois que os Beatles se separaram, em 1970, dedicou os anos seguintes da carreira solo para promover seus ideais pacifistas e de igualdade social.

Ainda na época dos Beatles, já chamavam atenção algumas ações da banda nesse sentido, como o fato deles só aceitarem tocar em lugares que garantiam que não haveria segregação racial na plateia, por exemplo.

Entre as causas pelas quais Lennon lutava, o fim da Guerra do Vietnã foi a principal. Seu envolvimento foi tão grande que o cantor britânico chegou a ser perseguido pelo governo americano, que o considerava um rebelde idealista.

Ele usou boa parte de sua fama e dinheiro para protestar contra a Guerra. Mas essa não a única causa. Esteve envolvido em assuntos como a descriminalização de drogas, direitos das mulheres e trabalhadores e, principalmente, a paz mundial.

Sem contar as bandeiras de feminismo e contra xenofobia, levantadas involuntariamente em todo o seu compromisso por sempre defender Yoko publicamente dos ataques preconceituosos dos tabloides britânicos e de alguns fãs, que a colocaram no eterno papel de a grande culpada pelo fim dos Beatles.

Desde que John e Yoko se mudaram para Nova York, em agosto de 1971, ele começou a se engajar em causas americanas e, com o ativismo político, se aproximou de organizações que lutavam pelas liberdades civis.

Quando 32 pessoas foram mortas em uma rebelião na penitenciária de Attica, por exemplo, o artista fez questão de criticar o governador Rockefeller pelas mortes causadas. Em outro sinal de protesto, fez questão de devolver a medalha do título de Membro do Império Britânico (MBE). Em carta enviada à rainha, explicou o descontentamento com o fato da Inglaterra apoiar os Estados Unidos no Vietnã e interferir na Guerra Civil nigeriana.

Mas seu protesto de não violência mais icônico foi ao lado de Yoko, sua parceira na arte e na vida. A lua de mel do casal foi um dos momentos mais chocantes da cultura pop. Uma lua de mel pública na cama da suíte presidencial do Hotel Hilton, em Amsterdam, onde os recém casados receberam jornalistas e fotógrafos do mundo todo durante sete dias. O Bed-In for Peace era uma lua de mel pública, numa campanha contra a Guerra do Vietnã e pela paz no mundo.

Já que, tudo que John Lennon falava tinha grande atenção da imprensa, por que não usar essa voz para tratar de assuntos tão necessários e que, até então, quase ninguém falava? Aproveitou os veículos jornalísticos e também o espaço publicitário (na ocasião da campanha War is Over) para promover ações para uma cultura de paz e assim influenciou gerações.

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“Pensamos nisso durante meses”, disse Lennon durante o protesto que ficou gravado para a história. “Isto é a melhor forma possível, a mais funcional e eficaz, de promover a nossa mensagem e protestar contra a violência, que as nossas mentes, unidas, pensaram. Isto é uma alternativa à violência: fique na cama e deixe o cabelo crescer. Você pode fazer isso da forma que quiser, e onde quiser, desde que faça de forma pacífica”.

Se John Lennon estivesse vivo, imagino que não estaria fazendo turnês de encher estádios. Talvez desse uma outra chance a uma experiência na Índia, onde viveu um intenso período de descoberta interior e, obviamente, de convivência com os companheiros de banda, que resultou na criação de 20 músicas.

John ainda estaria nos mostrando que “If you try” quer dizer mais que palavras ou uma melodia. Quer dizer uma ação real, palpável e coletiva. Tentar é uma responsabilidade de todos nós. Podemos dar uma chance à paz, por que não?

“Ele acreditava em ser verdadeiro e que o poder do povo mudaria o mundo. E isso vai acontecer. Todos nós temos a responsabilidade de visualizar um mundo melhor para nós e nossos filhos. A verdade é o que criamos. Está em nossas mãos”, escreveu Yoko Ono Lennon no prefácio de um livro.

Seu eterno parceiro nas canções eternizadas pelos Beatles, Paul McCartney, disse em uma entrevista como John era preocupado sobre como seria lembrado após a própria morte. “John Lennon não era tão seguro. Lembro de uma vez em que ele disse: ‘O que as pessoas vão pensar de mim quando eu morrer? Eu me pergunto se eles vão gostar de mim’, e eu dizia: Pare e me escute. As pessoas vão enlouquecer porque amam você. E eles vão te amar ainda mais”.

John era inseguro, como todos nós. Sua autenticidade era transparente em suas letras. Ele cantou sobre depressão, infidelidade, amizades, raiva, ciúme. Transformou a terapia em arte e a arte em terapia, abrindo a alma diante das coisas pelas quais todos passamos na vida, como separações, crenças, mágoas, posições políticas, o mal-estar com a gente mesmo ou as compulsões.

Estava tudo exposto ali. Seu amor por Yoko. A raiva pelo fim dos Beatles. O sofrimento pelo abandono dos pais na infância e a precoce perda de sua mãe, Julia, atropelada enquanto esperava um ônibus na calçada por um policial que dirigia bêbado. A intimidade da estrela, do artista, de um nada mito. Sempre tivemos muita proximidade com a vida de John. Saber de sua humanidade só o torna ainda mais especial. John errou, fez pessoas chorarem e chorou muito. Acontece.

Se John Lennon estivesse vivo, talvez não fosse essa lenda toda. Até porque a morte e a criação de ídolos como semideuses faz parte de uma indústria capitalista e muito lucrativa. Ele seria mais um senhor de idade, continuaria rico. Mesmo que fosse desconstruído, ainda seria um homem branco. Imagino eu que estaria reconhecendo seus privilégios e usando sua notoriedade ainda para atuar como ativista pela paz.

Talvez não tivesse seguido em frente com os protestos pacíficos. Não dessa forma. Talvez seu brilhante lado como músico e letrista tivesse falando mais alto — o que também significa lutar por ideais, com canções tão sinceras e tocantes.

Não importa. Mas o que eu sei é que ainda seria possível o escutar falando, já que ela sabia muito bem como falar, reconhecia a importância do diálogo e, principalmente, tinha a generosidade de se abrir para nós. Imagino ele falando sobre como vale a pena tentar fazer diferente. Nem que seja apenas para nós mesmos.

Photo by Yomex Owo on Unsplash

Depois de 40 anos sem John, é urgente resgatarmos o seu sentido de paz, que não é algo que pode ser transformado em mais uma mercadoria. A paz é o último estágio do desenvolvimento da razão humana, um triunfo da consciência essencial para a transformação social que tanto queremos.

Utopia? Prefiro imaginar como uma luz que ilumina um futuro melhor. Um mundo pacífico é uma possibilidade se a gente quiser. Toda utopia aponta para aspirações. E aspirações podem se tornar realidade. A imaginação é um dos nossos principais recursos para a sobrevivência. Prefiro imaginar que o sonho não acabou.

“Todos temos um Hitler em nós, mas também temos paz e amor. Então, por que não damos uma oportunidade à paz?”, John Lennon.

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Andressa Luz
Coletivo Yama

Jornalista e ux writer, acredito na comunicação, principalmente na linguagem escrita, como forma de liberdade e conexão comigo, com as outras pessoas e o mundo.