Obrigado, micro-ondas

Adriano Vieland
Coletivo Yama
Published in
4 min readSep 1, 2020

Tempos de clausura pós-moderna, dia útil, hora do almoço; a situação e o ronco no estômago vinham sugerir aquecer, no bom e velho amigo forno de micro-ondas, uma porção de risoto que encontrava-se designada para tal nobre momento.

O processo é simples e cada uma das etapas quase passa despercebida diante da nossa corrosiva rotina mecanizada: escancarar a geladeira, localizar o pote com o risoto, abrir o micro-ondas, e… de repente se deparar com uma inédita caixa mágica tecnológica em estado inoperante.

Um suspiro, um frio na espinha e uma constatação: o precioso não estava funcionando; seu painel de controle dormia um sono profundo, a iluminação em sua câmara de armazenamento jazia. A atmosfera era de megahertz de indiferença e meu diagnóstico foi rápido e preciso: tinha um problema, um seríssimo problema na mãos.

De imediato surge o macaco da agitação saltitando sobre a cabeça imoralidades como: “Estragou, jogue fora, já era”, porém a exibida racionalidade virginiana logo gritou: “Você sabe quanto custa um forno de micro-ondas novo?”.

Venceu a sugestão simples de minha amada esposa leonina que, da sala, rugiu em uníssono o óbvio, e que até então havia ignorado: “Deixe disso, é simples, chame a assistência técnica”.

A visita do especialista levaria ainda alguns dias úteis, mas na data combinada estava lá o dito-cujo tocando a campainha de casa.

Devidamente paramentado e equipado, ele se adentra à cozinha e, com o vigor de um soldado em missão especial, se dirige ao desfalecido forno, que descansava sereno na bancada junto da pia.

“Belo modelo, é novo, difícil de dar problema” — constatou à distância o técnico.

“Deve ser o fusível!” — adiantei-me de bate-pronto com uma destemperada petulância, como se fizesse alguma ideia de como seria o fusível de um micro-ondas, ou se ao menos existiria algum fusível nesse tipo de aparelho.

“Deixe-me ver…” — o técnico então responde, seguindo com um gentil e rápido sorriso no canto da boca — tentando fazer ter algum sentido naquilo que eu acabara de dizer.

Antes que completasse o terceiro passo em direção à sala, já ouço o diagnóstico — “Não é todo dia que me deparo com esse tipo de problema”.

Dou meia volta e retruco: “É sério, doutor?”, e ele sem dar muita trela à minha frustrada tentativa de fazer graça respondeu: “Não, nada sério; na verdade, sem estar conectado à fonte de energia, ele deixa de funcionar.”. As palavras dele reverberaram no ambiente como as de um sábio guru.

“Como assim?” — envergonhado, pergunto, ouvindo ao fundo a risada da minha sensata já referida leonina. Agora ele, fazendo com méritos a devida graça, me explicava que sem estar plugado a uma tomada, seria impossível o aparelho elétrico funcionar. Era isso.

Agradeci, ofereci um copo de suco de laranja, trocamos mais algumas palavras sobre a vida, os filhos, e ele partiu agradecendo pelo momento descontraído do dia; não foram mais do que cinco minutos entre o olá e o até logo.

Em mim, coberto de hematomas oriundos de tal surra de uma vida imersa ao imediatismo das constatações, sobrou a reflexão em estado de ebulição mental — sim, em algum momento nos dias que antecederam o “apagão”, devido algum movimento que fizemos no móvel ou no aparelho, o plugue se desconectou da fonte de energia. Não me dei ao mínimo esforço de identificar se o mais óbvio havia ocorrido, o que fiz foi partir para um diagnóstico precipitado, tido como lógico, porém irracional.

Agora me pergunto quantas vezes não fazemos isso. O quanto nos auto-sabotamos a ponto de migrarmos nossa estrutura física e mental para o descarte. Nos lançamos de cabeça aos parasitas modernos da paralisia, incerteza, apatia e inércia.

Aterrizando para nossos momentos de pausa, presença e autorreflexão, não estaria aí um breve entendimento sobre muitas das rápidas constatações que chegamos em nosso cotidiano?

Quantas vezes um completo torpor visceral toma conta de nós, desdobrando-se para a fadiga, o marasmo e a estafa, que nos deixa a um passo da desistência?

Quantas vezes nos submergimos a um processo de escuridão inconsciente a ponto de estruturarmos trevas às claras, fantasiadas de achismos, que nos lançam a constantes e doloridas ciladas?

Quantas vezes nos impomos processos de sofrimento automatizado, que tem ignição instantânea frente o estado de recorrência dessa condição obscura, que vem gerar crias ainda mais malévolas como o egoísmo, o apego, a teimosia, e a incapacidade de discernir e encontrar o óbvio, se temos conexão com uma fonte de energia inspiradora, que ao invés de nos desfalecer e nos converter a inúteis funcionais, possa nos direcionar a um processo de autorreconhecimento e valorização, de serventia social, nos concedendo assim um propósito revigorante.

Averiguemos se estamos nossa conexão é a uma fonte de energia valorosa; tentemos reconhecer as baterias que necessitam serem recarregadas frente a um processo de ressignificação e, por que não autorregeneração?

Vamos nos permitir estabelecer uma pausa silenciosa para assim nos encontrarmos genuinamente, reconhecermos nossa existência. Respirar, permitindo que o ar seja energizante e nos reconecte.

Que possamos identificar, durante esse processo, mais do que a condição de sobreviventes deste mundo em transmutação, mas também nossa força motriz para uma tomada de decisão certeira e agregadora, não apenas para nós, mas para o entorno, o todo que nos envolve. Tenhamos gratidão pela chance que temos de mudar a chave antes de, simplesmente, jogarmos a toalha, desistirmos.

Uma pausa que permita identificar as dores e honrá-las; compreender o legado de nossa história, tudo aquilo que nos formou; e que desse processo, o propósito possa transformar preocupação, incerteza, tristeza, raiva, medo, estresse, angústia e frustração em combustível para uma nova atitude.

E você, já checou se o micro-ondas está ligado à tomada antes de simplesmente desconsiderá-lo? Permita-se a um encontro com seu estado divino; conecte-se com o meio que lhe cerca; transborde uma expressividade engajadora para um novo olhar e o próximo passo.

Seja forte, use seu potencial criativo e nesse espaço, encontre seu porto seguro.

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