Amaciante e suor
Há muito com o que se distrair em uma corrida de rua. Há também endorfina.
Há muito com o que se distrair em uma corrida de rua. Corredores, lebres e tartarugas. Se o ritmo está dentro do previsto, se o compasso da respiração é físico ou ansioso, o movimento mais eficaz para levar o copo de água à boca e não engasgar. Um cachorro que gera um misto de fofura e angústia pela displasia de quadril que pode vir a ter.
As crianças que aguardam a passagem da mãe, vigiadas pelo pai e adornadas por cartazes que expressam seu amor e admiração. O risco que é levar um cuspe no pé de algum participante que se sente no direito de escarrar livremente em busca da linha de chegada.
Haruki Murakami e Drauzio Varella cruzam meus pensamentos. Lembro-me que terei material para finalmente escrever sobre Murakami e seus paradoxos entre escrita e treinos de corrida.
Atenção plena. Um blend improvável, mas familiar me traz de volta ao momento e ao pensamento industrial: passos largos, passos largos, passos largos.
Um dos componentes dessa combinação aromática surpreendente me deixa entre a infância, a saudade de rotina diária sob cuidados de mãe — comida e roupa lavada — mas me lembra também da minha vizinha. Tive a pachorra de farejar cada garrafa de líquido colorido do supermercado até identificar o aroma e associá-lo ao azul claro. A partir daquele dia, passamos a ser do time azul claro.
A outra nota aromática que arremata essa fusão, por sua vez, tem um fundo de puberdade com referências a transporte público no verão. Há quem chame de cecê.
A catinga, apesar do advento do desodorante, não me surpreendeu em uma corrida de rua mas a nuvem de cheiro de amaciante que pairava: essa sim. A maioria de nós corríamos com as camisetas que ganhamos no evento, no dia anterior. E isso me levou a pensar no zelo de quem teve o capricho de dar um banho de amaciante na camiseta nunca usada antes de uma corrida de rua.
E assim eu entendi que estava chapadinha de endorfina, muy doida ao identificar notas de amaciante azul claro e cecê alheio e achar isso o maior barato.
Terminei a corrida, não superei meu melhor tempo, mas o blend me deixou com vontade de rascunhar um parágrafo. Para lembrar que não é só coração partido ou saudade que gera texto no calor — mais literal, impossível — do momento, suor e amaciante também. Ou será que é endorfina?
💥 Outros textos sobre sensações: