Arraia de porcelana na parede

Não se despediram e ainda tiveram a ousadia de deixar objetos icônicos

Julia Latorre
Blog da Julia
1 min readFeb 10, 2022

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Há quem possa discordar se eu disser que uma das saudades mais venenosas é a saudade daquilo que ainda tenho. Pode ser diagnósticada.

É saudade sadomasoquista. O jato de ar frio atravessa o peito e de repente, nessa cama, ao som do mar das Asturias eu me transporto ao melhor dos mundos e ao mais desgarrado dos sentimentos.

Saudade daquilo que ainda é palpável, mas finito. Tem data de validade mas o passo do tempo apagou.

E o concreto que eterniza não garante a infinitude. Os corações já não estarão.

Nunca foi sobre latitude e longitude, é mais sobre certidão de nascimento.

Tanto bem-estar e acolhimento intoxicou os pensamentos intrusivos. Eu imagino de tudo, oficina do diabo, só não concebo a este apartamento outra utilidade senão a dos últimos 30 anos: nós, tal qual.

Alguém entra, ninguém sai — certos tiveram ousadia de. Não se despediram e ainda deixaram objetos icônicos que jamais permitirão que a decoração do apartamento tenha outro tema se não o fundo do mar.

Sim, eu estou falando dos peixes de plástico que imitan porcelana, isso mesmo, aqueles pregados na parede. Ninguém tira essa arraia da parede.

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Julia Latorre
Blog da Julia

Comunicadora especializada em gênero.♀ Escrevo aqui sobre o que dá vontade. linkedin.com/in/julialatorre