A hora mais escura

“A madrugada é sempre mais escura antes da aurora”, dizia a música. O Brasil vai caminhado em direção à escuridão a passos largos, se desfazendo diante de nossos olhos. Michel Temer era um estepe — daqueles mais finos e provisórios que equipam alguns carros. Agora que o estepe se foi, a crise que parecia remediada se agrava. Tal como um carro que já tinha um pneu furado, agora o país para porque não há mais estepes no porta-malas. É um momento perigoso, de vácuo de poder, que pode motivar todo o tipo de aventura extra-institucional e de “soluções caseiras” premidas pela pressa, pelo medo ou pelo oportunismo.

“Legitimidade”, em sentido estrito, Michel Temer sempre teve — era o vice-presidente, eleito com exatamente o mesmo número de votos que recebeu Dilma Roussef. Vinha se mantendo em uma corda relativamente bamba, conseguindo a aprovação de reformas em meio à baixíssima popularidade — o que não é exatamente um problema para ele, dada sua condição de substituto temporário, cumprindo um mandato tampão, e declaradamente sem maiores pretensões eleitorais. A questão é que, agora, Temer se submeteu à chantagem. Flagrado negociando pagamento de propina, se sujeitou ao moralismo de ocasião de quem, até outro dia, sustentava ser inaceitável gravar o presidente da república. No jogo jogado da política, Michel Temer acabou de se tornar inviável — o que talvez não acontecesse se ele fosse mais popular, ou se a economia estivesse mais pujante. De qualquer forma, o saldo é a paralisação das reformas até a solução da questão.

A solução deve ser a constitucional — que não prevê “diretas já”, mas eleição indireta pelo congresso caso Temer renuncie ou seja deposto. Ladrões contumazes, flagrados com dinheiro na cueca, já se apressam a pedir antecipação do pleito de 2018, o que seria um golpe. E, por falar em “golpe”, ainda não se sabe os detalhes exatos de como as gravações — que também envolvem Aécio Neves e Guido Mantega — veio à luz. Não deixa de ser notável que tenham aparecido logo quando as primeiras operações da Polícia Federal sobre as negociatas no BNDES foram desencadeadas. É cedo e ainda não estão disponíveis os pormenores, mas já há quem cogite que Eduardo Cunha, tal como um chefão do PCC, tenha participação, de dentro da cadeia, no que aconteceu.

Agora, é tudo conjectura. O que é certeza é o conteúdo do art. 81 da Constituição Federal:

Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.

§ 1º — Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

§ 2º — Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.

Qualquer outra solução que não a prevista no dispositivo é inconstitucional — mas o Brasil não é conhecido, especialmente na história recente, pela observância dos ritos. Lewandoswski rasgou a constituição quando determinou que Dilma Roussef não teria os direitos políticos suspensos, desrespeitando a disposição expressa do parágrafo único do art. 52 da carta. Um remendo, uma solução caseira de São Bernardo do Campo. O direito constitucional, lá, é um pouco diferente. Não se pode descartar, portanto, que aconteça algo parecido agora. Aqui, afinal, é o Brasil.

No que se pode apostar com certa segurança é em tentativas de autopreservação do estamento burocrático, de um lado, pelos sobreviventes; de outro, investidas da atual oposição para que se convoquem eleições diretas, talvez com a tentativa de ressureição de Lula, no rastro do vitimismo a que ele recorre. Tudo é possível em situação de tamanha incerteza e escuridão, criada por mandatários que se comportam como mafiosos em um enredo hollywoodiano, com direito a rastreamento de notas de dinheiro, gravação de diálogos por um “dedo duro” e sugestões nada republicanas de se “matar” um entregador de propina. Ainda que não seja literal, é obviamente gravíssimo — no mínimo, uma sugestão de obstruir a aplicação da lei.

Por enquanto, a maior chatice será aguentar os que foram flagrados primeiro posando de vestais quanto aos que foram flagrados depois. De uma coisa se pode ter certeza: são todos vagabundos, todos. Não há um “menos vagabundo” que os outros — mas isso, também, vai se tornar corrente agora. Já se ensaia um “queremismo” da esquerda, cuja capacidade de mobilização não pode ser ignorada. Já estão na rua, se comportando como se fossem oposição desde sempre, e não tivessem sido apeados há pouco do poder exatamente pelas mesmas razões.

Há uma longa noite pela frente — e uma séria dúvida: o Brasil aguenta?

(Publicado originalmente em Implicante.org em 05/2017)

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