Guerra assimétrica — à brasileira

Atento à imorredoura tradição de importar modismos e tendências com algum atraso, o Brasil está repetindo, com grande fidelidade, o script da eleição de Donald Trump: o candidato “massa de bolo” que, quanto mais apanha, mais cresce — embora essa irreversível tendência tenha sido escondida pela imprensa dedicada a eleger Hillary Clinton. Revelada apenas pela apuração dos votos, quando já não havia o que fazer, a vitória de Trump foi tratada como uma “zebra” incompreensível, desapercebida por todos — o que depois verificou-se ser apenas a boa e velha “narrativa”, pensada como o primeiro tijolo na construção que levaria ao impeachment (alguns exaltados falavam até em golpe militar e outras soluções menos heterodoxas) do milionário. Nosso Trump, hoje, é Jair Bolsonaro. Em comum com o americano não há muito: Bolsonaro é um militar aposentado com já alguma tradição política. Tendo exercido vários mandatos de deputado federal que obteve sucesso encaminhando seus três filhos para as urnas. De posses modestas e hábitos populares, o que Bolsonaro tem em comum com Trump é a percepção causada no público de franqueza e proximidade com os anseios do povo — o que não deixa de ser verdade no caso do presidente americano, apesar dele ser multimilionário.

Mais do que fenômenos de comunicação ou de marketing político, outro fator que explica o crescimento de Bolsonaro nas pesquisas (e também a vitória “imprevista” de Trump) é a identificação de ambos pelas “massas populares”, a “maioria silenciosa” — o povão, as pessoas comuns — como antípodas da condescendência e arrogância do “establishment” progressista, encastelado há décadas no poder. E, como a face mais visível e a voz mais audível deste establishment é a grande imprensa, é observando ela e suas atuais interações com o público que é possível vislumbrar como isso vem acontecendo.

Em primeiro lugar, o funcionamento da imprensa e seu papel na sociedade mudou radicalmente há algumas décadas — não a percepção que as pessoas tem dele, mas a função imaginada por seus próprios artífices, seus integrantes. A visão do apresentador de TV norte-americano da era pré telepronter, Walter Cronkite, narrando uma notícia importante da maneira mais objetiva, fria e clínica possível se tornou definitivamente uma coisa do passado — uma lembrança de tempos ingênuos e pueris do “hard news” e do idealismo de profissionais que não perdiam tempo com maquinações teóricas sobre “a impossibilidade de ser neutro” e outras desculpas baratas para ser parcial. A abertura da série televisiva “Newsroom” retrata Cronkite e outros célebres jornalistas americanos, como Edward R. Murrow e David Brinkley, representantes de um jornalismo hoje ultrapassado cuja maior preocupação era narrar fatos da maneira mais fidedigna possível — deixando ao público a tarefa de fazer qualquer juízo de valor. A visão editorial — a opinião do âncora ou mesmo do proprietário do jornal — era sempre deixada claramente separada.

Mas o que mudou?

Se há uma discussão longe de acabar nos meios acadêmicos do Direito é aquela sobre o poder das cortes constitucionais. O que é a constituição? Tenha a certeza de que mais de um ministro do STF dorme convicto, todas as noites, de que a constituição é o que ele disser que é. Coisa parecida acontece na imprensa. Quem decide “o que é notícia”? A própria imprensa. E, a partir do momento em que ela toma essa decisão e faz uma escolha, desencadeia o processo de pautar (ou, pelo menos, tentar) o debate público. Os episódios da exposição “Queermuseu” e da performance “La Béte” são sintomáticos: quase todos os grandes jornais e telejornais, em suas versões tradicionais e na internet, retrataram a situação como “tentativa de censura” de manifestações artísticas legítimas, equiparando as pessoas comuns que discordaram da presença de crianças nas duas exibições aos censores ditatoriais, como se exercessem algum poder além da faculdade de reclamar. Os mesmos repórteres que, dias depois, indagavam se a comédia “Como ser o pior aluno da escola” ultrapassava “os limites do humor”, posavam há pouco de defensores da liberdade de expressão. Paula Lavigne, uma espécie de Jimmy Hoffa do establishment artístico, foi outra que se irrogou nesse papel — mesmo tendo recentemente liderado uma rumorosa campanha de censura às biografia não-autorizadas de artistas e celebridades. Essas e tantas outras gritantes contradições não mais escapam à percepção das pessoas comuns, as quais, além de percebê-las, possuem meios de interagir e se expressar que eram inimagináveis há coisa de vinte anos. Nada mais passa sem reposta, sem a formação de um coro de indignados em caixas de comentários e redes sociais — o que já foi objeto de reclamação e lamúrias por parte de dezenas de jornalistas profissionais que se utilizam das mesmas plataformas. “Discurso de ódio”, “onda de ignorância” e outras figuras de linguagem hiperbólicas foram cunhadas por âncoras e colunistas que não conseguem compreender como a choldra ousa deles discordar, rejeitando sua visão de mundo e o programa ideológico que lhe dá suporte.

Assim é que a imprensa vem colhendo os frutos de sua nova função: ao deixar de servir o público para atender agendas ideológicas e a elite cultural, criou-se uma justa revolta: afinal, atividade jornalística foi concebida como algo muito diferente do que se verifica atualmente. O jornalismo é uma atividade de enorme relevância cujos praticantes não poderiam, jamais, se confundir com “vendedores”. Um vendedor é um profissional cuja atuação já nasce de um “conflito de interesses”; seu papel é convencer o consumidor a adquirir determinado produto. No fundo, não importa que ele seja melhor ou pior que o da concorrência — o vendedor é pago para fazer vender o produto “X”, e sua lealdade é toda dele. Isso é tudo que o jornalismo não deveria ser, isto é, não deveria haver nenhum “conflito de interesse”, nenhuma lealdade preordenada, nenhum compromisso preexistente senão com a verdade e a informação — coisa que hoje soa ingênua e até um pouco ridícula, não sendo improvável que isso venha ser denominado “discurso de ódio” ou alguma outra buzzword do tipo dentro de pouco tempo.

Flávio Gordon, autor do excelente “A Corrupção da Inteligência”, lançado há pouco pela Editora Record, escreveu o seguinte (p. 151–152):

A imaginação moral da ‘elite’ cultural brasileira estreitou-se de tal maneira que a medida última da justiça ou injustiça, de heroísmo ou covardia, de bem e de mal, de belo e de feio, passou a corresponder ao posicionamento adotado em face das fúteis polêmicas midiáticas do dia, as quais giram sempre em torno das mesmas temáticas artificialmente criadas pela mentalidade progressista, todas de uma banalidade acachapante, nas quais sentir-se bem é confundido com fazer o bem, e o gosto passa por senso de justiça”.

Assim é que, no dia em que uma professora de maternal morreu com o corpo queimado para salvar alguns de seus alunos de um assassino, a “elite intelectual” discutia arduamente seus próprios privilégios e importância — tudo diligentemente sendo amplificado e passado adiante por seus compadres em redações e ilhas de edição, numa ordem de prioridades absolutamente corrompida e pervertida, tão divorciada da realidade que um clima de antagonismo e enfrentamento entre a imprensa e o que deveria ser o seu público vem crescendo. Como a audiência da novela das nove não cai, isso é apressadamente interpretado como “fogo de palha”, algo tolo e passageiro — o que nos leva de volta a Jair Bolsonaro e sua transformação em símbolo de toda essa insatisfação, depositário da ira e do cansaço do cidadão comum. Ele aparece para dizer que sim, é um absurdo que crianças de tenra idade apalpem adultos pelados a pretexto de “arte”, mas que um problema ainda mais sério são os 60 mil homicídios por ano e a relativa moleza do sistema penal. Surpresa: a maioria das pessoas pensa o mesmo. As exposições de arte erótica voltadas para crianças, no final das contas, são apenas a face mais visível e imediata de um processo maior e cuja inércia irrefreável talvez não se meça pela audiência da novela. Outra surpresa: quanto mais a imprensa bate em Bolsonaro, mais as pessoas se irritam e mais ele cresce nas pesquisas, já que é percebido como um dos poucos políticos honestos em atividade, e toda a ladainha de que seria “misógino, racista, homofóbico, fascista” etc. só tem efeito entre convertidos, isto é, dentro do próprio campo militante progressista. O mesmo processo se repete, e quanto mais a imprensa tenta defender seus compadres frequentadores da Lei Rouanet e a importância de crianças alisarem adultos nús pelo bem da liberdade de expressão, mais as pessoas comuns se revoltam e expressam sua discordância — tendo cabido a uma inocente velhinha o papel de “mártir simbólica” do fuzilamento verbal e ocular de artistas indignados em um programa matutino da TV Globo. Outro tiro que saiu pela culatra: as pessoas comuns se compadeceram de Dona Regina, e os artistas só encontraram eco entre os seus.

“Guerra assimétrica” é uma expressão mais moderna para o que, no passado, se denominava apenas de “guerrilha” — um conflito entre forças de poderio muito desequilibrado que, pelo emprego de táticas diferentes, viabiliza o enfrentamento de um poderoso exército nacional por um pequeno grupo insurgente. A imprensa detém enorme poder e vastos recursos, mas encontrou no cidadão comum um tenaz oponente a seus planos hegemônicos — e o fez simplesmente lhe insultando a inteligência.

(Publicado originalmente em Implicante.org em 10/2017)

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