Liberdade de expressão, criptonazismo e a lata de lixo da história

Quando a excitação causada pela popularização dos serviços de streaming baixou um pouco, e suas limitações começaram a ser sentidas pelo público — de problemas técnicos aos de conteúdo — queridinhos da opinião pública, como o Netflix, passaram a sofrer críticas parecidas com as habitualmente dirigidas à televisão. Se são ou não ouvidas, e em que medida, eu desconheço. E embora tenha críticas severas a fazer (como, por exemplo, por não haver mais nenhum filme com John Wayne no catálogo), é preciso também reconhecer os acertos. O mais recente é o magnífico documentário “Five Came Back”, uma produção própria do Netflix. Baseado no livro de mesmo nome escrito pelo jornalista Mark Harris (Objetiva, 2016), o filme narra a participação de cinco diretores de cinema americanos na Segunda Guerra Mundial: John Ford, George Stevens, John Houston, Frank Capra e William Wyler. Procurados pelas Forças Armadas, mas todos voluntários, abandonaram carreiras de enorme sucesso para produzir filmes de instrução para os soldados, documentários das batalhas que vinham sendo lutadas no pacífico e na europa, além de peças de propaganda e informação destinadas ao grande público. Tudo o que tinham de diferente foi brutalmente nivelado pela guerra. Todos os cinco se expuseram ao perigo, perderam colegas das equipes de filmagem e foram profundamente transformados pela experiência de documentar, como testemunhas oculares privilegiadas, o maior conflito da história humana. Junto com o documentário, o Netflix disponibilizou grande parte dos filmes produzidos pelos cinco diretores, documentos indispensáveis para entender a escala da guerra, sua violência, monstruosidade, e, sobretudo, a grande cruzada moral capitaneada pelos aliados.

Coube a George Stevens — responsável por clássicos como “Os Brutos Também Amam” — documentar o que foi encontrado pelas tropas aliadas em campos de concentração e extermínio nazistas. Intitulado simplesmente “Nazi Concentration Camps”, o filme corre quase todo em silêncio — é possível ouvir os estalos e chiados da película — e é precedido pela leitura de uma declaração juramentada prestada por Stevens. Tamanho era o horror dos campos que alguém julgou ser necessário que o diretor jurasse, solenemente, que aquilo que era mostrado em imagens de fato aconteceu. Isso, claro, muito antes que se compreendesse, em toda a sua dimensão, o holocausto. Consta que, uma vez editado o filme, Stevens armazenou os rolos de filme bruto e nunca mais tornou a vê-los. O filme é puro jornalismo de guerra: direto, brutal. É, também, a documentação quase forense de uma cena de crime; uma gigantesca e obscena matança de inocentes, as primeiras imagens de um recém descoberto genocídio. Como muitos soldados que pouco ou nada sabiam sobre a ideologia nacional-socialista e para quem os campos que libertavam eram uma visão totalmente inesperada, Stevens ficou marcado para sempre. Veio a dirigir, anos depois, “O Diário de Anne Frank”.

Um dos grandes méritos de “Five Came Back” é narrar como a indústria cinematográfica acabou alistada no esforço de guerra e deixou de se dedicar ao entretenimento para não apenas documentar batalhas e instruir soldados, mas mostrar por que a guerra era travada: conter e erradicar o mal. Essa era a missão dos aliados. Japoneses e alemães tinham em comum uma visão de “destino manifesto” e absoluta falta de pudor em como atingi-lo: não pelo comércio ou pela diplomacia, mas pela matança, destruição e escravidão de populações subjugadas. Está, felizmente, tudo muito bem documentado; fatos que não devem jamais ser esquecidos: milhares de horas de filmes, milhões de fotografias, incontáveis relatos escritos por historiadores, soldados e vítimas da guerra são testemunhos vivos dos crimes cometidos pelas tropas do Eixo. Hoje, com a internet a facilitar ainda mais a pesquisa sobre o assunto, parece uma brincadeira de mau gosto que ainda haja negacionistas do holocausto, mas eles existem.

O fenômeno do revisionismo histórico teve uma figura de destaque no historiador inglês David Irving. Autor de uma excelente biografia do general alemão Erwin Rommel e de um relato sobre a destruição de Dresden por bombardeios aliados, Irving foi desacreditado quando passou a sustentar que os campos de extermínio “não existiram” e que Hitler “não sabia” que judeus, ciganos, poloneses e outros indesejáveis eram sistematicamente exterminados. A questão foi parar nos tribunais, e Irving condenado por “deliberada e persistentemente, baseado em suas próprias convicções ideológicas, manipular e falsear evidências históricas dos fatos”. No Brasil, o negacionista mais famoso é Siegfried Ellwanger. Seu “Holocauso: judeu ou alemão?” é facilmente encontrado em sebos. Ellwanger fundou uma editora antissemita, a “Revisão”, por onde propagava suas repugnantes teses, segundo as quais o extermínio nazista seria a “mentira do século”.

Teorias da conspiração, como a de que a ida do homem à Lua foi produzida em um estúdio cinematográfico, ou de que a terra é plana e tal “segredo” estaria sendo escondido pela NASA, têm em comum a negação histérica da realidade, de fatos documentados e realidades observáveis. É justamente por isso que se denomina tais crentes de “negacionistas”: confrontados com provas e evidências abundantes e robustas, contrárias à posição que defendem, mesmo assim jamais a abandonam, em uma resistência quixotesca que é parte do, digamos, “show”. O negacionista é, antes de tudo, alguém com o ego superdimensionado, capaz de acreditar que o mundo inteiro produziu algumas das mentiras mais detalhadas, elaboradas e completas apenas para esconder aquilo que ELES sabem. No caso dos terraplanistas, a coisa chega a ser engraçada, e até meio ingênua. No caso do holocausto, o buraco é bem mais embaixo.

É notável que, entre os negacionistas do holocausto, não se encontre sequer um que, simultaneamente a negar a realidade provada e documentada, não revele um evidente viés antissemita e totalitário. Não há entre negacionistas do holocausto, por exemplo, pesquisadores conhecidos pelo rigor e minúcia em seu trabalho, que estejam preocupados apenas em corrigir inconsistências eventuais que possam existir em documentos históricos. De profissionais que já foram renomados, como David Irving, passando por aventureiros como Siegfried Ellwanger, até a tuiteiros imberbes que repetem esse lixo para parecerem “perigosos”, o que une os negacionistas é um tipo de sociopatia, um desejo de auto-representação pervertido segundo o qual eles seriam “corajosos” por “desafiar” aquilo que é amplamente aceito — e é amplamente aceito porque é verdade. Em realidade, o negacionista do holocausto não está dizendo que nada daquilo aconteceu: o que ele quer dizer é que pouco importa que tenha acontecido, aquelas pessoas, afinal, mereciam isso. Como é muito simples dizer isso, o ultraje não pode parar por aí: é preciso dizer que aquele sofrimento indizível não existiu, como que para amesquinhar, diminuir a magnitude dos acontecimentos. Fazer pouco deles, como se se estivesse falando de pisar em uma barata.

Certas idéias foram postas, com muita justiça, na lata de lixo da história. O nazismo e o comunismo são proibidos em lugares onde essas ideologias fizeram mais vítimas, como, por exemplo, na Polônia e Ucrânia. Leis existem na Alemanha que proíbem a impressão da suástica, pela indelével associação do símbolo com o nazismo e sua terrível memória. A própria “Lei de Godwin”, antes de ser um lembrete para que o nazismo não seja banalizado como referencial em discussões, marca a ideologia e os fatos que ela gerou como marco simbólico de um pináculo de crueldade com que a humanidade, até então, jamais havia imaginado. Tal qual urubus e hienas, no entanto, há aqueles que reviram o lixo da história, e se refestelam nele, gritando para que todos a sua volta olhem: o negacionista sente um prazer perverso em defender o assassinato e a eliminação de seus semelhantes; ele é como o tarado que se masturba no ônibus, se exibindo para os outros passageiros, imaginando que eles estão gostando da cena grotesca.

Negacionistas do holocausto, em sua imaginação atrofiada, já tentaram sequestrar a liberdade de expressão e utilizá-la como escudo de suas atrocidades. Irving e Ellwanger perderam. E eles devem, sempre, perder — porque a liberdade nunca servirá de muleta para quem esteja interessado em eliminar e escravizar seus semelhantes. Que seja sempre assim.

EM TEMPO: também no Netflix, há (ou havia) o documentário “Best of Enemies”, que retrata os embates televisivos entre William F. Buckley Jr. e Gore Vidal, travados na campanha presidencial dos EUA em 1968. Em um dos debates, Vidal chama Buckley de “criptonazista” — e recebe uma eloquente resposta, digna de quem sabe da gravidade da acusação. Não deixe de assistir.

(Publicado originalmente em Implicante.org em 04/2017)

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