O Brasil é um pântano moral

O Brasil é mesmo um desafio à imaginação de quem o observe atentamente. Os acontecimentos mais violentos e improváveis se repetem com monótona regularidade, a ponto de qualificar o brasileiro quase como especialista em combate urbano pelo simples fato de ter nascido e crescido em qualquer cidade com mais de 100.000 habitantes. Recordista absoluto de homicídios, com índices piores que os de países em guerra civil, como a Síria, e liquidando mais cidadãos em um ano do que soldados americanos em toda a guerra do Vietnã, o Brasil definitivamente não é para principiantes, como diz o velho aforismo, tão gasto pela inevitável repetição.

Ultimamente, então, parece que os acontecimentos foram inventados pelo mais cruel integrante do Monty Python que, cansado da habitual comédia nonsense do grupo, resolveu retratar a mais desgraçada república de bananas em um roteiro sangrento que mistura o “Cheese Shop Sketch” com os ingredientes antropológicos e a violência com a qual convivemos como se fosse um sotaque ou uma variedade de queijo malcheirosa típica de uma região vizinha.

Primeiro, a greve da PM do Espirito Santo. Essa foi a simulação perfeita da tal “Teoria das Janelas Quebradas” e do que as pessoas são capazes de fazer quando a fiscalização e repressão mínimas (e já insuficientes e defeituosas, mas, ainda assim, minimamente presentes) saem de cena: saques, aumento exponencial dos homicídios, vandalismo etc. Foram mais de 100 mortos em apenas uma semana, incluindo policiais que tentavam voltar ao trabalho. Aqui apareceu o primeiro sintoma da doença moral brasileira: manchetes aturdidas, entre a má-fé e a tentativa de aparelhar o acontecimento, de um lado, e de outro a simples atrofia de qualquer sentido moral, noticiavam que, no caos criado pela ausência de patrulhamento da polícia, não apenas “bandidos” estariam cometendo crimes e saques, mas também “pessoas normais”. Houve uma conhecida colunista de esquerda que decretou, a partir da análise de vídeos filmados por moradores das janelas e sacadas de prédios, que os saqueadores do comércio eram “de classe média” — mas isso é assunto para a psiquiatria. Seja como for, a greve da PM no Espírito Santo serviu para mostrar o adiantado estado de deterioração de nossa sociedade, e a ocorrência de tantos saques e violência nem é o principal sintoma disso: mas a noção ultrajante de que pode haver crime cometido por “pessoas normais” quando a polícia se ausenta. Não existe, na cabeça de quem escreveu isso, qualquer distinção entre “certo” e “errado” — e basta tirar a polícia da equação para que um criminoso deixe de ser “criminoso”. Ora, ele é apenas uma “pessoa normal” aproveitando uma oportunidade de levar para casa uma TV de LED sem pagar por ela! É em parte uma admissão de culpa e uma confissão de falha.

Depois, veio o STF com mais uma de suas jabuticabas: a indenização a presos pelas condições desumanas das cadeias brasileiras. O Ministro Barroso — sempre ele! — ponderou que, como o Estado não tem dinheiro para indenizar todos os presos (porque todas as cadeias são uma versão terrena do inferno e todos eles merecem ser indenizados), se estava diante de um grave problema: as indenizações teriam que ser muito baixas, deixando assim de compensar o preso pelo sofrimento, o que derrotaria a finalidade compensatória da indenização. Assim, ele sugeriu que, ao invés compensação monetária, se soltasse os presos mais cedo, abatendo tempo da pena. Não deixa de ser emblemático que no leading case o requerente de indenização tenha sido condenado por latrocínio — e já em liberdade provisória, com tornozeleira eletrônica.

Houve um tempo em que matar um semelhante era tabu — matar para roubar, então, um tabu maior ainda. De qualquer forma, a decisão foi saudada como um acerto: afinal de contas, presos estão sob custódia estatal e a punição não pode ultrapassar o tempo de reclusão para incluir as condições dantescas dos presídios brasileiros. Falou-se muito que o primeiro indenizado “dormiu com a cabeça no vaso sanitário” durante a prisão, o que foi repetido pelo Ministro Barroso e por especialistas ouvidos sobre a decisão como um símbolo da falência do sistema e justificativa para a indenização devida ao detento. Essa é a frieza da letra da lei — há um silogismo lógico-jurídico que permite essa conclusão sem que qualquer outra consideração sobre a gravidade do crime e a quantidade de sangue derramada pelo indenizado seja levada em consideração. Mas a existência humana é muito maior que silogismos e exegeses e subsunções. Entre os conhecedores da lei a decisão foi recebida de um jeito, mas entre a população, a reação foi de saudável indignação: enxergam a indenização como um “prêmio” dado a quem optou por se arriscar a ir parar em uma dessas cadeias — e que sabe muito bem quais são as condições delas.

Há um aspecto perverso na indenização ao detento: ela o compensa pela falência do Estado em prover um serviço que é uma de suas funções constitucionais. Mas o Estado falha em TODAS as suas funções (salvo o recolhimento de impostos), de modo que se poderia argumentar que quem depende do SUS e da presença da PM para garantir sua segurança, por exemplo, mereceria indenização quando estes serviços falham. No caso da segurança pública, com a proibição do porte de armas e o monopólio estatal do uso da força, isso é ainda mais fácil de verificar. No entanto, o Judiciário tradicionalmente rejeita pedidos de indenização formulados contra o Estado por vítimas de crimes, sob o fundamento, justamente, de que a polícia “não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo” e que “se forem indenizadas todas as vítimas de crime, o Estado não terá como honrar as indenizações” — os mesmos argumentos usados pelo Ministro Barroso para sugerir a soltura prematura de criminosos como meio de compensá-los pelas “condições desumanas” das cadeias.

Pode-se concordar que a decisão é correta do ponto de vista técnico — mas e do ponto de vista moral? Há volumes e mais volumes sustentando que o direito é isolado da moral; carreiras de respeito construídas sobre a defesa do tecnicismo frio e da pureza do direito, de que “tribunais não são lugar para convicções”; o direito, enfim, não pode deixar de operar por nenhuma consideração moral. Essa separação teórica tem sua razão de ser — mas é tão impossível de ser plenamente realizada quanto a “isenção total” e a “equidistância” na comunicação. E isso não é apenas inevitável, como desejável mesmo: a lei pode ser uma barreira formal, artificialmente criada contra a barbárie, mas é a moral a ultima ratio. As sociedades que se perdem dela vão se transformando, lentamente, no Brasil.

(Publicado originalmente em Implicante.org em 02/2017).

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