Maicon
Maicon começou a vida fugindo de Merthiolate. Perdia o tampão do dedão no asfalto, gritava alto, mas em casa segurava a bronca. Porque não daria pra segurar a onda de a mãe se ligar no dedo esfolado e resolver deixá-lo desinfectado usando seus remédios ardidos do capeta.
Os parças da rua sabiam que Maicon era diferenciado; jogava a bola pra um lado, pro outro e ninguém tirava a pelota do pés do moleque. Era coisa de louco. ‘Menesquente da peste!’
Maicon morava perto de uma ladeira. A canseira que dava ir buscar a bola lá embaixo fez nascer regras pra evitar capacho. Tinha o chamado ‘embalo, busca’; ou seja, quem tá mais perto da trave e no embalo da corrida é que faz a fita. Busca a bola nem que ela vá parar na avenida. Também tinha o ‘chuta, busca’. Esse se traduz. Lembrar dessa época emociona. Faz tocar uma música e um filme; lembrar da vida toda.
O garoto tinha uma meta. Era jogar bola pra sempre. No Rio, na Itália, em Meca. Não importaria a saudade da tia que tanto lhe ajudou. Não importaria o frio equivalente a dormir dentro de um congelador. Quem tem sonho no horizonte, suporta toda dor.
Maicon cresceu e junto com ele, sua habilidade em deixar metade do campo de boca aberta. Quem não tivesse alerta, tomava rolinho, chapéuzinho, carretilha e mais uma milha de ‘dibres’. Aliás, taí uma palavra que Maicon sempre se negou a falar: driblar. ‘É dibrar, porra!’
Conforme a Europa lhe quis, a humildade do garoto foi mudando de status. Não tirava de rico, não humilhava os amigos, mas aprendeu a lidar com os ratos. Por hora, chamemos de cartolas. O menino fez treino de media-kit, aprendeu a falar com a imprensa e foi se metendo na indecência do futebol.
‘Sou só um menino correndo atrás da bola’.
Não enrola, Maicon. Agora tu é global business. ‘Hypokrisis’ vem do grego, não do latim e significa ‘amigo do Marin’.
A trave não é mais de Havaiana, a cama agora tem lençol de cetim e isso não seria um problema se o emblema do novo Maicon não fosse o silêncio passivo. A dissimulação gravada ou ao-vivo. Maicon, aquele da rua, de apostar tubaína, de ter vergonha de menina. Esse Maicon foi vendido. Agora Maicon vive ao lado de bandidos.
Seu pai e empresário é um baita mal-educado, famoso por manipular o filho. Que foi bem criado, adestrado e premiado, mas, coitado, não imaginou que o ano de 2015 começaria a dar fim na farra.
As festas em iate, os milhares de dólares numa só noite de boate. Tudo com dias contados. O padrão FIFA pouco a pouco estaria esgotado.
Começou com os dirigentes antigos, depois os novos, depois presidentes que, antes, se achavam a versão 2.0 de Deus. Ahhh, que orgulho desse ano em que mano com ligação suja, recebendo lambuja, passou a ser visto como corja. Era hora da limpa. De ver a melhor finta que a sociedade e suas instituições poderiam ter dado aos ladrões.
Jogadores, técnicos, assistentes, marketeiros, cartolas, senhores e senhoras; todos atrás das grades. Todos sentido o peso da novidade que é o século 21. Onde — um por um — dos ‘reis do migué’ será perseguido. Onde bandido que ‘revela’ craque será preso igualzinho traficante de crack.
Para Maicon faltou postura de coletividade. Faltou falar a verdade. Faltou revelar o que todo mundo sabia. Faltou mandar Pelé calar a boca e, assim, fazer poesia. Faltou meter uma louca pressão no Blatter, no Platini, no Del Nero, na RGT. Faltou ligar pro Romário e dizer ‘siga em frente’. Faltou vir na frente da TV, do Instagram e postar algo além do relóginho novo:
Pra Maicon, faltou lembrar que já fez parte do povo.
Família que leva três pro xadrez não pede habeas corpus no fantástico mundo da Rede Globo.