20 cm a mais

Well
Com sono e sem vergonha
2 min readFeb 26, 2019

“Quanto tempo, acho que a gente não se vê desde Paris!” Era uma frase gentil até, mas a música alta, a falta de luz e a catuaba batalhando a ressaca da noite anterior me deixaram meio zureta. Não ajudou eu ter que olhar mais de 20 cm para cima para tentar enxergar os olhos dele, nem o sorriso com dentes tão perfeitinhos que pareciam cortados de uma revista, photoshopados. O ritmo do coração fez o álcool correr mais rápido. A catuaba ameaçou voltar, mas era só frio na barriga. Abri um sorrisão amarelo, contraí o rosto para espremer alguma simpatia, em vão: “você está errado, a gente se viu depois sim”. Inventei uma desculpa e saí de perto.

“Bom te ver!” Não sei como aprendi essa frase, agora uso o tempo todo. De tanto repetir, o sorriso nem me custa mais tanto e sai quase sincero. Não é que eu esteja fingindo entusiasmo, é só que demonstrá-lo não é natural. Fico feliz de ver as pessoas, mas a alegria vem preguiçosa, devagar. Quando a risada por causa do encontro chega, o conhecido já foi embora.

“Depois você fica com fama de metido e não entende o porquê.” Foi de surpresa que descobri isso — como a maior parte das coisas que eu aprendo sobre mim. A catuaba ameaçou voltar, mas eram 11 da manhã de um dia de trabalho, no estômago só água e café. Introvertido, eu aceitaria. Meio estranho, tudo bem. Acuado, até ia. Mas metido não rolava. Decidi me transformar. Não deu. O máximo que cheguei foi ao “Bom te ver!”, que não é grandes-coisa. A minha timidez é maior que eu, pelo menos 20 cm.

“Olha o brinquinho novo!” Era carnaval e ele chegou com dedos sobrando. Depois foram as mãos, na minha cintura, no meu peito. “Bom te ver”, pensei sozinho, e o sorriso abriu. “Esse aqui é da mesma altura que eu”, me dei conta. Não sei por que, na minha memória, ele aparece sempre em contra-mergulho. Foram mais alguns segundos ali, parados. O sorriso congelado na simpatia ensaiada, as mãos parecendo duas pedras. A catuaba ameaçando voltar, mas a mão dele no meu peito serviu de barreira. “Vou seguir o trio elétrico”, falou e foi. Às vezes a gente não se transforma, mas muda um pouco, já é um passinho, um avanço do tamanho de uma régua escolar. Pensei nisso e depois segui também, um tico mais atrás do que eu queria, mas pelo menos não deixei o bloco passar.

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