A que mundo pertencemos

Well
Com sono e sem vergonha
3 min readJan 29, 2019

Eu flutuando meio perdido entre duas bolhas: aquela da qual eu saí e uma outra na qual eu nunca vou poder entrar. Durante a psicanálise, muitas imagens e metáforas vão surgindo na minha cabeça. Essa foi uma das que surgiu hoje.

Há algum tempo, durante um almoço, meu chefe começou a perguntar sobre a minha vida. Não de um jeito grosseiro, intrometido, mas com uma curiosidade genuína. "Me interesso por essas pessoas que se destacam das trajetórias das suas famílias", explicou. Ele se referia ao fato de eu ter sido o primeiro a ir para a faculdade, o único a ter frequentado universidade pública, de transitar agora entre a esquerda festiva intelectual e formadora de opinião do centro expandido de São Paulo.

Cresci na periferia, no limite entre o asfalto — onde ficava a casa da minha avó, em que toda a família dividia quintal — e a favela do Jardim Santo Elias. Ter um pai presente foi uma das primeiras diferenças em relação a maior parte das pessoas que me cercavam. Com o tempo, outras foram me distanciando ainda mais: fui o único a ir para a creche, a estudar em escolas particulares, gostar de ler parecia ser coisa do outro mundo, fui me tornando bom aluno, entrei para a faculdade. Todo dia, adquiria novos conhecimentos, hábitos, comportamentos que me tornavam cada vez mais diferente das pessoas com quem cresci.

Mas me afastar do universo da minha infância não me aproximou de outro. Nos ambientes que comecei a frequentar, me sentia mal por não ter pais formados na faculdade, por não ter ouvido Chico Buarque no berço, por não conseguir compreender as referências a filósofos e filmes cult que as pessoas ao meu entorno faziam. Me sentia mal por ter a pele mais escura, por morar mais longe, por não saber dizer de qual cidade europeia algum antepassado meu veio. Fui me desligando do mundo onde nasci, sem poder entrar nesse outro. E aí comecei a me sentir nesse vácuo.

Aos poucos, encontrei pessoas que se pareciam comigo. Gente que tinha saído do Capão, de Osasco, de Barueri, do interior do Goiás, que não se sentia mais pertencente ao lugar onde nasceram, mas também não se enxergavam como parte daquela gente tão cheia de privilégios e tão conhecedora de coisas que — agora eu aceito — eu nunca vou conhecer completamente. Gente que tem a pele mais escura, que não foi fã de nascença de Caetano, que não vive como seus pais.

Saí da psicanálise pensando sobre isso. Sobre como foi difícil encontrá-los, sobre como muitas vezes me senti sozinho, lutando para tentar me convencer que pertencia a algum lugar. Fiquei feliz lembrando dos meus amigos, de como a gente sorri aliviado cada vez que descobre algo novo que compartilhamos, da sensação de pensar que não precisamos pertencer ao mundo de ninguém (estamos criando o nosso próprio). Enfim, senti esperança pensando que, por causa das cotas, esse processo será menos difícil e solitário para os próximos que são como nós.

Fundamental para pensar sobre isso foi ter lido a Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante, que contam a história de uma mulher que passe por esse mesmo processo e tem as mesmas sensações.

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