43ª Mostra de SP | Cicatrizes

Adam William
Adam William
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4 min readNov 15, 2019

É interessante deparar-se com um filme cuja trama principal poderia facilmente transformar-se em um thriller psicológico e ainda assim opta por capturar seu espectador pela crueza em vez dos possíveis excessos no cinema. Não apenas em texto, mas também em quesitos técnicos, Cicatrizes (Savovi) revela-se uma obra que incomoda desde seus primeiros minutos sem a necessidade de explicitar a fonte do incômodo logo de cara. E isso realizado através de cenas sem diálogos ou trilha sonora, onde a única “companhia” é, na maioria das vezes, uma única personagem retratada em planos que, ou a isolam, ou a devoram. Quando finalmente entendemos que algo está faltando na vida daquela mulher, já estamos engajados e curiosos, pois sua angústia de alguma forma chega até nós.

Portanto, o diretor Miroslav Terzić logo nos introduz a esta mulher, Ana (Snežana Bogdanović), uma costureira que vive com seu marido e filha (Marko Bacovic e Jovana Stojiljkovice, respectivamente) cuja vida não é ditada por essas pessoas, mas sim pela ausência de uma outra: um filho morto no nascimento, mas que nunca teve seu corpo entregue à mãe ou mesmo o lugar de sepultamento não fora lhe dito. Diferente do restante de sua família, Ana recusa a aceitar isso simplesmente, perseguindo constantemente a pequena fagulha de esperança de que seu filho possa estar vivo. Quando, enfim, ela consegue uma nova informação após 18 anos buscando respostas, Ana se vê com a possibilidade de provar sua versão dos fatos: que seu filho fora entregue à outra família.

A obra é baseada em histórias reais, pois na Sérvia — país de origem da obra –, há uma estatística que mais de 500 crianças desaparecem anualmente, como dito nos créditos finais, entretanto Terzić não parece interessado em investigar essa estatística expondo atividades criminosas em hospitais. Pelo contrário, Cicatrizes é uma obra extremamente íntima, esmiuçando o impacto emocional que um evento assim pode ter em uma família. Logo, boa parte da obra se dedica a mostrar Ana indo contra familiares e amigos, funcionários do hospital e a polícia local, a fim de mostrar sua visão dos fatos e convencê-los a ajudá-la, seja dando suporte emocional — os mais próximos, apesar de partilhar da dor, preferem seguir em frente — ou auxílio na busca — o hospital se nega a divulgar onde o bebê foi enterrado, a polícia já cansou de investigar –, mas conforme ela segue por esse caminho, o mundo aparenta tornar-se mais ameaçador.

A câmera cria planos que traduzem bem a situação e sentimentos de Ana de formas visualmente imersivas: muitas vezes, um primeiro plano em seu rosto, fazendo do espectador o único a compartilhar de sua dor e sua luta. Já em outros momentos, os planos inteligentemente enquadram elementos do cenário — muros, árvores, até mesmo a agulha de sua máquina de costura — que a separa dos demais, ressaltando seu isolamento constante. E à medida que a busca se intensifica, planos abertos evidenciam como Ana está indo contra tudo e todos. Unidos, a fotografia cria uma narrativa que transborda as aflições para fora das telas, poupando a necessidade de transmitir os mesmos sentimentos através dos diálogos, que por sua vez sequer cogitamos ser possível a essa altura.

O única relacionamento de Ana que acaba explorado mais a fundo, é com sua filha Ivana. Uma relação que se mostra, no mínimo, intrigante: se por um lado ela passa os dias em busca de um filho que nunca existiu, a filha precisa lidar com a frustração de ter uma mãe que nunca está presente de verdade, mesmo vivendo juntas e se vendo diariamente. Esse conflito entre ambas funciona ainda melhor por se tornar o gatilho para a segunda metade da obra, visto que embora não demonstre, Ivana também possui a necessidade de um encerramento para essa questão. Conforme o fardo passa a ser dividido entre ambas, o filme ganha contornos mais otimistas, principalmente pelo ótimo desempenho de ambas as atrizes.

Conforme aproxima-se do final, Miroslav Terzić muda o olhar de sua obra, acentuando as questões jogadas anteriormente, mas que traz uma sequência final mais que satisfatória e que beira o poético, que mostra que independente do cenário, o destino sempre irá tentar colocar as peças nos lugares certos. Desta forma, contrariando seu título, Cicatrizes não trata das marcas de traumas de outrora, mas sim de feridas abertas e a dor de um luto que não consegue se concretizar e, portanto, não pode ser superado. Uma obra difícil, mas marcante por si só.

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