43ª Mostra de SP | Dois Papas

Adam William
Adam William
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4 min readOct 29, 2019

Para aqueles que assistem de longe, talvez seja impossível imaginar que existam tantos conflitos entre aqueles que estão dentro de uma instituição tão fundamentada quanto a Igreja Católica. Desta forma, os primeiros minutos de Dois Papas (The Two Popes) surgem de forma a subverter tal expectativa, já que dão início a obra com tons de competição, em meio à escolha do novo papa em 2005. Uma escolha acertada, já que os protagonistas desse “embate” serão aqueles a quem iremos acompanhar pelos próximos 125 minutos do filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio Sobre a Cegueira).

O drama Dois Papas, entretanto, não pende para um lado biográfico. Pelo contrário, sua narrativa é quase que completamente desenvolvida através das conversas entre o Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) e o cardeal Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce), que viria a se tornar o Papa Francisco alguns anos depois. Ambos com um desejo em comum de manter a relevância do catolicismo no mundo, mas com visões ideológicas quase sempre contrárias, nos mais diversos assuntos: dos mais simples como o interesse pelo futebol e tango, aos mais complexos como casamento entre pessoas do mesmo sexo e controle de natalidade. Quando Meirelles enfim os coloca frente a frente, o texto de Anthony McCarten (indicado ao Oscar pelo roteiro de A Teoria de Tudo) ganha uma força inimaginável.

Se os diálogos são a base principal na narrativa, nada seriam não fossem as atuações de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce. O primeiro dá vida ao conservador Papa Bento com um semblante severo e uma postura aparentemente inflexível, mas cuja expressão de trejeitos sutis demonstra inúmeros conflitos em poucos segundos. É difícil não se deixar hipnotizar pela interpretação de Hopkins enquanto este transita por inúmeros sentimentos — da convicção à dúvida à angústia e, novamente, à convicção — em questão de segundos. Já Pryce, também um veterano do cinema, desempenha seu Bergoglio com um carisma único, exibindo uma humanidade que cativa todos a seu redor. Um homem cuja convicção, mesmo floreada por brincadeiras e sorrisos, não soa inferior a de seu companheiro de cena. Pelo contrário, a dinâmica da dupla permite que ambos, em meio a seus medos, culpas e aflições, sejam humanizados no decorrer da trama.

Conforme os debates entre ambos ocorrem, Meirelles e o fotógrafo César Charlone (que trabalhou com o diretor em Cidade de Deus) criam uma cinematografia interessante para ilustrar o embate de opiniões, através de plano e contraplano com a câmera posicionada sobre o ombro dos personagens. Desta forma, conforme os argumentos ganham mais força, seu intérprete “invade” a cena do outro, crescendo sobre este. Contudo, ao passo que o diretor pontua as discussões — que vão desde assuntos relacionados à igreja até questões pessoais, como o diálogo sobre os Beatles –, ele repetidamente enquadra a dupla de forma tímida, pequenos ante aos ostensivos cenários, demonstrando que por mais importantes que sejam seus debates e opiniões, não apenas questões mundanas frente à igreja e a fé.

Na segunda metade do filme, contudo, há um elemento que acaba sendo utilizado de maneira excessiva. A fim de contextualizar algumas escolhas dos personagens, Meirelles investe um bom tempo de narrativa em uma sequência de flashbacks envolvendo Bergoglio durante o período de intervenção militar argentino. Embora as cenas em si sejam importantes para o desenvolvimento da narrativa e do personagem, a inserção do seguimento acaba atrapalhando o ritmo construído de forma meticulosa até este ponto, além de privar o espectador da presença de Hopkins e Pryce — o jovem Bergoglio é interpretado por Juan Minujín, que não compromete, mesmo que desapareça diante da interpretação da dupla principal –, o que talvez seja um pecado ainda maior que a quebra do ritmo. Além disso, falta um aprofundamento em questões polêmicas — como o abuso infantil dentro da igreja –, por vezes abordado de forma acanhada, quase um ‘segredo’ entre eles, como na cena da confissão.

Conduzido com paciência e maestria por Fernando Meirelles, Dois Papas é uma obra que fascina pelo seu cuidado técnico e temática, mas principalmente por sua dupla principal, Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, que revelam-se como o maior acerto do filme. A própria sensação de imperfeição do filme cria uma poética simetria para com seus próprios personagens, que também estão longe da perfeição e tampouco parecem querer atingi-la. Quando assistimos os momentos finais com os dois amigos — e não mais as duas autoridades santas –, entendemos que a obra chegou a seu objetivo: trazer ambas as figuras a um nível muito mais próximo do espectador, tornando-os mais relacionáveis, como seres humanos falhos.

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