Crítica | Batman: Silêncio

Adam William
Adam William
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4 min readJan 4, 2020

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Há um conceito sobre contar histórias — sejam elas no cinema ou em outras mídias — conhecido por “arma de Tchekhov”, que basicamente diz que se uma arma aparece no primeiro ato da história, ela precisa atirar até o ato final. Por sua vez, isso opõe-se justamente a questão do “Deus ex machina”, termo cunhado para aquelas soluções que surgem do nada para resolver o problema dos protagonistas de uma história. Ironicamente, o maior mérito do diretor Justin Copeland e do roteirista Ernie Altbacker é fazer com que esses dois conceitos se contradigam em Batman: Silêncio (Batman: Hush), adaptação do quadrinho homônimo de Jeph Loeb e arte de Jim Lee.

A história — mais relevante pela arte de Jim Lee do que pela narrativa de fato — introduz um novo vilão para o homem-morcego chamado Silêncio. O personagem, cuja face é envolta por bandagens, arma um plano que envolve boa parte de sua galeria de vilões clássica — incluindo Harley Quinn e Coringa — e se desenrola por 12 edições para enfim revelar a identidade do novo vilão. A ideia é a mesma aqui, mas Copeland adapta o arco de modo que ele se encaixe na cronologia estabelecida pelas animações da DC — mais precisamente se passando logo após o mediano Reino do Superman — e fazendo uma ou outra mudança na história para que ele se encaixe na curta-duração de 82 minutos.

Há duas mudanças grandes na trama do filme em comparação ao material original: primeiro, um foco maior ao relacionamento de Bruce Wayne (Jason O’Mara) e Selina Kyle/Mulher-Gato (Jennifer Morrison), e segundo, uma mudança drástica — que não entrarei em detalhes para evitar o spoiler — referente a dúvida de “quem é este novo vilão?”, ponto central da história na hq. Quanto a esta segunda, não seria um problema se a decisão tomada por Altbacker não soasse abrupta e improvisada, de modo que alguns elementos inseridos na história unicamente para justificar o surgimento deste vilão — a “arma de Tchekhov” da trama — fiquem soltas no decorrer da animação sem nenhuma justificativa, piorando um aspecto que já era problemático no quadrinho e que, no caso do filme, poderia simplesmente ter sido removido de vez. E por sua vez, a resolução inserida no lugar soa muito mais uma tentativa de parecer esperto do que funcional de fato.

Há também a questão de inserir a obra no universo compartilhado de animações da DC, algo que cria amarras para a história que não existiam originalmente. Assim, temos a presença de Damian Wayne como um “easter-egg de luxo” — que ao menos gera um momento divertido entre o Asa Noturna (Sean Maher) e a Mulher-Gato — e um Lex Luthor sem propósito que serve apenas para lembrar o espectador que agora ele supostamente faz parte da Liga da Justiça(!?). São momentos que distraem a atenção do que deveria ser importante e, mesmo sem comprometer, soam gratuitos demais por não serem relevantes de fato. Outros personagens surgem em pontos-chave da trama substituindo heróis e vilões menos populares da DC, que não atrapalham, mas também não fazem muita diferença na trama, como a Batgirl no início do filme.

Como nem tudo é mal aproveitado, a nuance do relacionamento entre Bruce Wayne e Selina é um dos pontos altos do filme. O casal que sempre teve suas idas e vindas nas diversas mídias — dos quadrinhos aos desenhos, passando por Batman: O Retorno e até O Cavaleiro das Trevas Ressurge — funciona em Silêncio através do desenvolvimento dos personagens e suas contrapartes “civis”, o que gera boas piadas sobre as más escolhas de Bruce para relacionamentos, mas também flerta com a ideia de aprofundar a psique do herói, já que Selina é aquela que questiona o código do herói, algo relevante em alguns pontos da trama — como a na sequência em Metrópolis — e que pode ser abordada em filmes futuros.

Batman: Silêncio é o tipo de obra que vem apenas para exercer a função de apresentar o quadrinho para um novo público, pois pouco tem a acrescentar para o personagem neste universo compartilhado animado DC e tampouco usa a oportunidade para criar uma versão mais interessante do arco de Loeb, que já tinha seus próprios problemas. Vale mencionar, entretanto, a tentativa contínua do estúdio em construir uma cronologia adaptando arcos que talvez funcionassem muito melhor sozinhos, como é o caso de O Cavaleiro das Trevas, adaptação — em duas partes — do clássico de Frank Miller e que triunfa ao entregar um produto novo que não perde o charme da obra original, algo que indica que o estúdio priorizar a essência dos personagens e histórias antes de simplesmente jogar os quadrinhos na tela. Só espero que descubram isso antes de tentarem adaptar O Longo Dia Das Bruxas

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Adam William
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