Das ironias da vida

Um dos momentos gloriosos de The Legend of Zelda: A Link to the Past

Sou um grande fã de videogames. Ou, como alguns costumam chamar no meio, um hardcore gamer. Hoje em dia, jogo menos do que gostaria pois me falta tempo e, em parte, isso se deve à minha profissão de tradutor. Traduzo há nove anos, e uma boa parte do meu tempo traduzindo tem sido dedicada à localização de jogos, o que hoje é uma satisfação pessoal e também uma baita ironia da vida. A satisfação é pelo óbvio motivo de eu estar trabalhando e ganhando dinheiro com algo pelo qual sou apaixonado. A ironia?

Bem, a ironia é que eu aprendi inglês pelo fato de não haver localização de jogos na época e, graças a isso, hoje localizo games para que quem jogue não precise saber outro idioma para jogar. Isso significa que, se eu fosse uma criança hoje, provavelmente não teria aprendido inglês tão cedo e talvez não conseguisse sequer ser tradutor.

Jogo videogame desde os quatro, cinco anos de idade. Comecei com a geração do Atari e acompanhei todas as gerações posteriores, com períodos de maior ou menor intensidade. Sou eclético quanto a gêneros de jogos, mas desde pequeno tinha uma grande predileção por games que contassem histórias. Daí vem meu gosto por RPGs e adventures, dois gêneros particularmente ricos em narrativa. Nos anos 80 e 90, o mercado de localização para o português era praticamente inexistente (talvez a maior exceção seja a Brasoft, que fez um trabalho de localização excepcional em vários adventures da Lucas Arts) e os brasileiros tinham que se virar no inglês (e até no japonês!) para poder jogar. No entanto, eu não sabia falar inglês e só contava com o inglês da escola para me virar — minha mãe não tinha dinheiro para me matricular em um curso. Então, comecei a buscar em dicionários e gramáticas em inglês as respostas para aquele monte de diálogos que eu encontrava no caminho das aventuras nas quais entrava. A vontade de jogar e de saber o que eu estava jogando venceu minha dificuldade, e me tornei um autodidata no inglês.

Sim, aprendi a ler em inglês jogando videogames. Anos mais tarde, acabei caindo de paraquedas na profissão de tradutor (já contei essa história antes, aqui) e, obviamente, saber outro idioma era essencial para essa profissão. Por muito tempo, traduzi as mais variadas áreas, depois fui afunilando até chegar a trabalhar quase que exclusivamente na área da informática. Então, em 2012, uma das agências para quem eu trabalhava me perguntou se eu queria traduzir um jogo de videogame. Minha parte criança/adolescente só pensava “Traduzir. Jogo. De. Videogame.” e eu, sem muita experiência em localização, aceitei sem pestanejar. Não sei se pela qualidade como tradutor ou se pela paixão à área (ou graças à minha revisora na época), a tradução foi um sucesso. A partir daí, passei a dividir as traduções de TI com a localização de jogos dos mais variados estilos e para praticamente todas as plataformas. Existem muitas dificuldades inerentes a essa área de tradução (quem nunca pegou uma planilha de Excel com centenas — às vezes milhares — de linhas sem contexto ou arquivo de referência e chorou no cantinho ao saber que o cliente não poderia ajudar?), mas a sensação de ver um jogo traduzido por você ou de ler um elogio à sua localização de um game em uma análise compensa tudo.

O mais curioso nisso é que tudo aconteceu meio sem querer: nunca sonhei em ser tradutor e ganhar dinheiro trabalhando com o mundo dos games nem aprendi inglês com outro objetivo que não fosse o de terminar Chrono Trigger, Final Fantasy VII ou The Legend of Zelda: A Link to the Past (entre outros). No entanto, hoje sou um profissional realizado e orgulhoso do trabalho que faço. Tenho certeza que a minha versão criança/adolescente adoraria saber qual futuro a aguardaria.

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Valter Mendes Junior
Como entrei na localização de jogos

Tradutor profissional, músico semiprofissional, historiador de formação e ser humano, sempre.