Ponto sem retorno

A vida é um ciclo, segmentado em ciclos menores: parece que, não importando o meio, de alguma forma o começo e o fim sempre acabam por se conectar. Esse conceito está presente em toda cultura. Samsara, ouroboros, Matrix. Está no dia a dia.

ouroboros

Praticamente tudo o que sou hoje remonta a alguma semente plantada no passado, na infância, e que nunca parou de crescer, mesmo que deixada de lado por algum tempo.

Eu cresci num momento em que minha família se mudava muito, por conta do trabalho do meu pai. Passei meus anos formativos dividido entre RJ e SP e, por isso, não cheguei a ficar muito tempo na mesma escola, ou com os mesmos amigos. Esse desprendimento, essa falta de raízes, me fez buscar outras formas de firmar os pés. As sementes começaram a ser plantadas.

A primeira foi o gosto pela leitura, em parte herdado de minha avó, dona de uma bela biblioteca caseira que era um dos meus cantos favoritos desde antes de aprender a ler. Já havia entretenimento em simplesmente virar as páginas, com cuidado, como que para as letras não saírem do lugar, só pelo prazer de saber o que vinha depois. Não demorou pra que eu aprendesse a decifrar aqueles símbolos e tivesse nas histórias em quadrinhos o meu passatempo preferido — era obrigatório que a casa fosse regularmente abastecida com gibis.

influência para gerações

Minha família sempre flertou com a língua inglesa. Meus pais arriscavam ler e falar, minha irmã fazia curso e eu, caçula, inserido naquele meio, ficava ali só absorvendo tudo. Não a língua em si, claro, mas o convívio com ela. Os sons já me eram familiares, e a noção de que existiam formas diferentes de comunicação já fazia parte da minha visão de mundo. Em nossa casa, só filmes legendados. Muita música de fora. Livros, revistas. E dicionários. Minha mãe comprava gibis em inglês nos sebos e dava pra nós, com um caderno e o dicionário. Se a gente quisesse ler, teria que traduzir e anotar.

ele ainda existe!

Claro que não dava muito certo. O dicionário de papel, antigo, já era meio caduco pra lidar com aqueles gibis jovens cheios de gírias, contrações, trocadilhos. Mas a segunda semente estava plantada. Agora eu sabia que existiam histórias fora do meu acesso. Eu teria que saber decifrar aquelas novas combinações de símbolos se quisesse saber o que vinha depois — não bastava mais simplesmente virar a página.

Aí surgiu a terceira semente. O gosto pela exploração, pela descoberta. Quanto mais eu viajava (ainda que só pelas estradas de mato infinito entre RJ e SP) e quanto mais contato com outras culturas (ainda que na forma de suspenses legendados em VHS), mais minha mente se abria para o que eu acreditava ser, de verdade, o mundo: um lugar esperando ser desvendado. Enciclopédias, atlas e documentários eram minha fast food. A fantasia e a ficção eram minhas formas de expressar um anseio platônico por mundos além. E aí surgiram os jogos.

Aquela novidade permitia interagir com mundos virtuais que antes só podiam ser imaginados, ou assistidos de forma passiva. Eu estava finalmente explorando. Logo, os jogos de quadradinhos e pontinhos evoluíram para aventuras com histórias complexas, cheias de texto, em inglês; e lá estava eu, feliz da vida, anotando tudo no caderno com o velho dicionário de papel ao lado.

The Lost Vikings

Os anos 90 trouxeram meu gênero de jogo preferido até hoje: os adventures gráficos — em especial os da LucasArts, como Monkey Island, Day of the Tentacle, Full Throttle, o belíssimo LOOM e o insano Sam & Max. Preferido por quê? Jogos a) cheios de texto e diálogos, b) em inglês, mas acompanhando imagens e situações que facilitavam — e muito — a assimilação de vocabulário e estruturas gramaticais, e c) passados em mundos fantásticos, abertos para exploração e descoberta. Todas as sementes, presentes.

Curse of Monkey Island, LOOM, Grim Fandango e meu preferido de todos, The Longest Journey

Segui jogando. Segui lendo. Segui explorando. Mas precisava pensar no futuro. E fiz faculdade de Design Gráfico, porque sim. Porque sabia desenhar. E jogo não dá futuro, é coisa de gente imatura e irresponsável. Ou, pelo menos, é o que a sociedade adora dizer.

Como todo mundo sabe, jogos são uma mídia marginalizada. Ainda. Pais desaconselham, políticos desaprovam, imprensa desabona. Para eles, essa tecnologia enviada do inferno se resume a violência gratuita e temas moralmente questionáveis com o único propósito de desvirtuar nossos jovens. Algumas outras pessoas ainda consideram games brinquedo de criança, limitados a evocar sentimentos nostálgicos dos fins de semana passados na casa do primo nerd.

para alguns, tudo se resume a isso

Essa situação mudou um pouco com a chegada das redes sociais e dos dispositivos móveis, que quebraram um pouco dessas barreiras e fixaram o conceito de jogo eletrônico na mente do grande público.

Empresas da área pipocaram. Depois de me formar, consegui trabalho em uma produtora daqui de Curitiba, como artista 2D. Fazia interfaces, cenários, coisas do tipo. Mas estava sempre sondando a possibilidade de traduzir os jogos. Como eram feitos para clientes de fora, saíam todos em inglês. Meu chefe na ocasião explicou que traduzir jogos custava caro e dependia do interesse por parte das distribuidoras. E como vimos há uns parágrafos, o Brasil não estava no topo da lista de prioridades para essas empresas.

cenário feito para um jogo que acabou cancelado

A bolha dos jogos sociais acabou estourando, projetos foram cancelados e a empresa infelizmente fechou. Na rua, fui procurar trabalho em agências de publicidade, mas eu já sentia que não queria aquilo pra mim. O clima nas agências, o ego, a loucura para acompanhar o mercado e vender produtos — tudo isso ficava cada dia mais intragável para mim. E eu também nunca me considerei lá um ilustrador dos melhores. Então parei para pensar o que mais eu sabia fazer, e o primeiro ciclo se fechou: língua inglesa. O óbvio? Dar aulas.

Dei aulas numa escola de idiomas por uns anos, mas a exigência cirúrgica dos horários e as rédeas curtas dos métodos de ensino também minavam a minha motivação. Por indicação de um dos chefes da ex produtora de jogos, consegui entrar em uma agência de tradução. De tijolo. Batia ponto e tudo o mais. Fiz legendagem por 2 anos. Mas, num ciclo que infelizmente se repetiu, a agência passou por problemas, perdeu clientes, reduziu o pessoal pela metade, e lá estava eu de férias permanentes outra vez.

Mas agora com know-how. E com contatos, que é o mais importante. Passei a andar com o pessoal saído dessa agência, e mais um pessoal novo que ia conhecendo. Aparentemente, Curitiba é um polo de tradutores, boa parte graças à Sheila Gomes, que faz um trabalho fantástico centralizando todo mundo.

chegando sem conhecer ninguém, em meu primeiro (de incontáveis) encontros com tradutores. as mãos no canto inferior direito são da Sheila

Organizamos caravana para um congresso da Abrates no Rio. Lá, entre bares, almoços e cafés, usei a cara de pau polida naqueles anos dando aula e comecei a conhecer gente. Pessoal simpático, receptivo, disposto a compartilhar informações. Numa dessas trocas de figurinhas conheço um dos donos de uma agência de tradução que, vira e mexe, pegava projetos de jogos. O breve papo fluiu com naturalidade e, por causa dessa apresentação mais pessoal do que profissional, ele me chamou para um projeto grande que estava para chegar — mesmo sem conhecer o meu trabalho. Segundo ele, people skills são mais difíceis de lapidar do que text skills e, como ele queria alguém de confiança e trato fácil para aquele trabalho, me chamou.

Depois desse projeto, o rumo das coisas seguiu quase por conta própria. Logo passei a receber, de agências “comuns”, projetos de jogos mobile, simples o bastante para ser terminados em poucos dias, mas com títulos suficientes para me manter ocupado quase que constantemente. Depois disso vieram as edições 2015 e 2016 do LocJAM, cujas participações renderam contratos de trabalho com algumas das melhores agências de localização. E meu trabalho de tradução em geral acabou se alojando na transcriação, com clientes de peso que valorizam o texto mais solto e o pensamento lateral.

Hoje eu passo os dias em contato com a língua, estudando, me aprimorando. Absorvendo o máximo possível de cultura popular para manter o repertório afiado. Traduzindo, lendo e contando histórias, explorando e descobrindo. Sementes plantadas, frutificando.

A vida é um ciclo, o começo e o fim sempre dando um jeito de se conectar. Explorei muitos mundos e experimentei muitas áreas no caminho, e agora considero estar em um ponto sem retorno. Mas seria prudente chamar a tradução assim, de caminho sem volta? Talvez mais do que “sem volta”. Ela é a volta. É o começo, o meio e o fim.

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