A Economia dos Relacionamentos

Futuro Possível
Revista Possível
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4 min readAug 14, 2020

Fernanda Guerra — advogada, facilitadora de diálogos, comprometida em cuidar das relações , idealizadora da Ser Consultoria e sócia da Medicina da Consciência

imagem: takeovertime

No meio de uma conversa fui capturada por uma frase: “… Me disseram que deveria arranjar uma mulher de 35 anos, sem filhos, para que pudesse casar e ter os meus filhos …”. O papo continuou afetuoso, fluido e atento, mas essa frase seguiu comigo como algo mal digerido. Dormi e quando acordei a frase ainda ecoava incomodamente dentro de mim.

Percebi que o desconforto vinha do fato de que, naquela despretensiosa e corriqueira sentença, estava embutida uma dinâmica mercantil. É … isso mesmo, uma prática consumista.

Ainda que conscientemente possamos não querer ser consumidores e, sobretudo, bens de consumo, é assim que nos comportamos diante da vida e por consequência também nas relações.

Já escutei muitas falas parecidas com essa que agora me impactou sem sentir qualquer estranheza.

Não quero julgar quem a falou, certamente falei algo muito parecido em algum momento, e por muito tempo também acreditei nessa lógica. O que me proponho é uma reflexão sobre a forma como vivenciamos as relações, pois sinto que podem existir outras possibilidades para elas.

Parafraseando a escritora nigeriana Chimamandan Ngozi Adchie existe um grande perigo quando apenas experienciamos uma única narrativa porque isso pode se tornar definitivo para nós. Assim, me coloco a fluir por alternativas para essa questão.

Somos definidos pela nossa capacidade de consumir. É nesse paradigma que estamos inseridos. Essa é única história que nos é contada com muito poder e consistência. Portanto, estamos condicionados a desejar para consumir. Indo além, significa dizer que somos condicionados a identificar liberdade com essa capacidade de consumir o que desejamos, e consequentemente acabamos por construir nossas vidas baseadas em padrões-desejos que podem supostamente serem saciados por coisas-produtos.

Nessa lógica nos tornamos produtos-pessoas que são meros meios para que consumidores-pessoas alcancem seus desejos-objetivos.

Estranho, né?! Mas é realmente isso que meus olhos observam e meu coração sente.

Acredito que como seres gregários queremos genuinamente estar juntos. Compartilhar a vida é necessidade humana universal (é o que sinto). No entanto, experiencio que, quando expressamos essa legítima necessidade de estarmos juntos, a fazemos na forma de um desejo de algo, e aí partimos em procura de sexo, namoro, casamento, affair, amizade. Desta forma acabamos por “etiquetar” tudo e todos, usando-os como produtos numa loja de departamento da forma que mais nos convém.

Acabamos por classificar o outro como produto, e também nos sujeitamos a essa classificação. Tudo de acordo com nossas expectativas, vivência e percepções, limitando e sendo limitados em rótulos e metas de performance estabelecidos pelo desejo de consumo do momento.

Vamos formatando um sentir autêntico numa lógica de mercado que permeia todo nosso agir no mundo, porque essa é narrativa única que ouvimos, a de que consumir é essencial para sustentar empregos, progresso, bem-estar e felicidade.

Se trouxermos essa realidade para o mundo virtual podemos, através de lente de aumento dos algoritmos exponenciais, vivenciar ainda mais realisticamente esse paradigma mercantil relacional de que falo.

Acontece que a consequência dessa cultura de consumo estendida para nossas relações nos leva a deixar de nos relacionarmos com o outro. Tal prática faz com que apenas nos relacionemos com nós mesmos e nossos desejos atendidos, ou não, já que nos relacionamos com “produtos” defeituosos que frustram nossas expectativas, mas que foram por nós acessados na prateleira da vida.

Dolorido isso, não é?!

Comecei a me dar conta dessa sistemática quando passei a experienciar as relações como algo fenomenológico.

Percebo que por mais que possamos projetar, planejar ou até mesmo conduzir uma situação, quando incluímos o outro nessa fórmula nem sempre a dinâmica acontece como exatamente planejamos.

Há um processo complexo que flui a cada palavra, a cada gesto, que interage e reage com o todo e as partes. Não temos nenhum controle sobre o que isso tudo resulta. Não há domínio sobre essa situação, ainda que haja um plano e que o cenário esteja perfeito. O que está no comando é a teia da vida que se desenha pelos sutis movimentos da interação do outro conosco, com ele próprio e com tudo mais em volta. Podemos até montar a equação, mas o resultado é imprevisível.

Se nos focamos no objetivo acabamos por não nos darmos conta que a relação é um processo, de que a “DR”, a famosa conversa sobre a relação, já é a própria relação e de que todo processo relacional acontece nos pequenos e cotidianos atos, e não na incrível festa de casamento, na inesquecível viagem de férias. Esses momentos também são reais, bons e devem ser valorizados, mas são apenas pontos no longo e curvilíneo tracejado da nossa existência.

A vida acontece no campo relacional e não nos planos que traçamos para seguir. Vai se edificando no ordinário. Estar atento, presente, comprometido, verdadeiro e receptivo a esses pequenos movimentos é viver.

E como bendito por Dominic Barter: “só há conexão se abrirmos mão de toda fórmula“.

Uma relação não se encontra, se constrói vivendo com liberdade, amizade, honestidade, confiança, compreensão, comunicação e muito amor.

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Movimento que investiga futuros possíveis a partir da lente da regeneração.