Cemitério das costas

Futuro Possível
Revista Possível
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6 min readAug 14, 2020

Por Andreza Jorge — cria do Complexo da Maré, mãe da Alice Odara, licenciada em dança pela UFRJ, Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET-RJ, Doutoranda em Artes da Cena pela ECO/UFRJ, docente do departamento de Artes Corporais da UFRJ, coordenadora da Casa das Mulheres da Maré e uma das idealizadoras do Mulheres ao Vento.

imagem: indigodreams

Cemitério nas costas*. Ouvir essa expressão dita por Regina Duarte em tom negativo ao falar sobre a prática de rememorar pessoas que morreram me remete a uma forma neoliberal totalmente posicionada no extermínio da vida quando não há formas de exploração da força vital traduzida em trabalho.

Sigo refletindo sobre a morte para entender a vida e penso que minha história pessoal e familiar versa sobre carregar muitos cemitérios nas costas, sendo essa prática mais uma das inúmeras fissuras provocadas na dureza colonial-neoliberalizante da vida de forma organicamente intelectual por ser ancorada na ancestral estratégia de sobreviver a escassez e ao desencanto.

Passei a vida carregando o imaginário de vida sobre a morte precoce do meu pai ao qual não tive uma oportunidade consciente de conhecer, mas que em todo momento relembravam fatos que me foram ditos sobre a existência dele que me auxiliavam a montar esse quebra-cabeça me fazendo imaginar o som da sua risada, o seu cheiro, a textura dos cabelos, a rigidez da sua pele e principalmente seu senso de humor e um talento nato, que eu suspeito ter herdado, de debochar da vida.

Todos ao meu redor, familiares, vizinhos, pessoas que o conheceram, faziam questão de me falar sobre a vida dele e também sobre o significado de sua morte para a vida deles, entendi, desde muito nova, que essa prática o tornava o mais vivo possível para mim.

Passei a carregar esse morto comigo.

Minha mãe, a Dona Elza, desde que eu me entendo por gente, tem um hábito de ir a enterros sempre, isso já até virou piada na família. Confesso que nunca entendi e sempre questionei o porquê de ela ir a tantos enterros, até de gente que ela mal conhecia em vida, e ela me dizia sempre uma frase pronta, que ouviu de algum lugar, mas nem sabe onde:

“Melhor ir a enterros do que em festa”

Eu achava essa frase esquisita e nunca entendi o que ela quer realmente dizer, acho que nem ela mesmo, mas a frase trazia uma resposta para o sentimento difícil de admitir gostar de ir para enterros, sendo esse um lugar comumente indesejado de tanta dor e tristeza.

Minha mãe sempre vai, enterros de vizinhos, de vizinhos de vizinhos, de conhecidos de infância, de conhecidos de conhecidos, ao ponto de uma vez ter ido para um enterro e ao chegar no cemitério ter se dado conta que se confundiu e acabou parando no cemitério errado, porém para não perder a viagem, acompanhou um enterro de um desconhecido que acontecia naquele momento. Rimos muito dessa história. Lembramos sempre.

A verdade é que minha mãe perdeu o pai quando era muito nova e de forma repentina, um acidente, minha mãe também ficou viúva muito jovem e de forma repentina, um assassinato, então acredito que ela tenha ficado com um aprendizado profundo que só o contato com a morte pode nos dar: a ciência da fragilidade da vida.

Ela precisou entender o luto e fez isso construindo um cemitério nas costas e ensinando as pessoas através da sua presença e consolo nesse momento de vazio em que se manifesta a falácia de uma racionalidade desassociada de corpo, alma e coração pulsante, que é possível seguir adiante e viver flertando com a concretude da mortalidade e que se há uma maneira de driblar esse destino único criado sobre a ideia de morte é tornando a pessoa sempre viva, falando sobre ela, contando suas histórias, dando detalhes sobre sua aparência.

Eu só fui duas vezes em enterro ao longo de toda minha vida. Nunca quis ir. Sempre achei uma insanidade minha mãe fazer tanta questão de estar em funerais. Precisei tomar a decisão se iria ou não em um enterro quando um pai de uma amiga morreu, ele não era simplesmente o pai de uma amiga, era uma figura querida que sempre me recebeu bem, me tratava com respeito e atenção e era tão criativo e inteligente que toda conversa que ele tinha comigo me tornava uma pessoa melhor. Decidi ir.

Achei importante ter aquele morto na minha história para continuar pensando sobre a minha vida e sobre como passar adiante todo o conhecimento que ele me deu.

Ao chegar no enterro era tudo diferente de como eu já tinha visto na TV, a maioria das pessoas estava de branco e não de preto, as pessoas cantavam umas músicas em uma língua que eu não entendia, não havia muito choro, mas haviam semblantes entristecidos, tinha bastante gente e em um momento uma moça de branco pegou uma pombinha branca e soltou pra ela voar, depois colocaram algumas pipocas sobre o caixão também e a música e as palmas eram em perfeita sintonia.

Lembro de ter ficado muito curiosa com todo o processo, mas eu estava triste e nessa tristeza só conseguia pensar que quando as pessoas cantavam eu também sentia um pouco de alegria, porque era a sensação que o som me transmitia, fiquei confusa de estar sentindo alegria também naquele momento.

O tempo passou, hoje adquiri mais elementos para compreender aquele momento, inclusive para cavar detalhes na minha mente e assimilar com o que tenho aprendido com outras culturas sobre velar seus mortos e seus rituais. Hoje entendo que ele fazia parte de uma religião cuja a relação para compreender a morte perpassa pela consciência de continuidade da vida que é muito maior do que um indivíduo em si. A compreensão de vida transcende, transborda. No livro os Nagô e a Morte tem uma frase que diz

“O ser que completou com sucesso a totalidade do seu destino está maduro para morte”

e não há outra forma realizar esse ritual sem que a satisfação e a alegria sejam também parte desse momento. Dá para sentir alegria e tristeza em um enterro. E poder experimentar essa sensação de eternidade sobre pessoas amadas que morrem me fez querer carregar cemitério nas costas.

Nego bispo nos alerta para o fato de sermos início, meio e início e essa continuidade que nos confere a existência é justamente o entendimento da morte não como um fim mas como a possibilidade de novo início, por isso, não é e nem nunca foi um problema carregar esse cemitério nas costas, nem pra mim e nem pra Dona Elza, na verdade eu diria que carregamos os mortos, não só nas costas, mas em todo corpo, sempre, e em vários momentos e isso garante e garantiu a manutenção da vida que advém do encantamento e da surpresa do desconhecido ser também alguém tão íntimo.

Essa circularidade que nos realoca a outras formas de ler o mundo e senti-lo pulsar…Entendimentos que transcenderam a morte epistêmica e a invisibilidade e rasgaram a filosofia cotidiana da insistência de viver e atravessar o tempo como uma pedra jogada hoje que acerta ontem o seu alvo.

Com isso eu entendo que quando alguém reclama de falar sobre os mortos e diz publicamente que não quer carregar um cemitério nas costas, está dizendo que não quer falar sobre a vida pelo fato de não considerar essas vidas como algo relevante. Ao se recusar a falar de mortes, simplesmente por não querer falar sobre esse tema e entendê-lo de forma “negativa” está se recusando também falar sobre vida. VIDA.

E nós sabemos bem porque essas pessoas não querem falar sobre VIDA, porque quem realmente não gosta de pensar sobre a vida, não é quem gosta de pensar morte. Quem não gosta de vida é assassino. E assassinos não podem ter cemitério nas costas. Eles se escondem.

*Frase dita por Regina Duarte, que exercia o cargo de secretária federal de cultura do Brasil, em uma entrevista para a CNN no dia 7 de maio de 2020, ao ser questionada sobre o posicionamento da secretaria especial de cultura sobre as mortes de artistas brasileiros em tempos de pandemia.

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Movimento que investiga futuros possíveis a partir da lente da regeneração.