Shoshanah Dubiner

CONFLITO: Uma oportunidade de aprofundar intimidade

Futuro Possível
Revista Possível
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5 min readJul 3, 2020

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Fernanda Guerra é facilitadora de diálogos e advogada certificada/licenciada em Contratos Conscientes. É idealizadora e co-fundadora da SER, da Medicina da Consciência e criadora da ONG Curaser. Mãe do João.

Cresci com a crença de que conflito é algo para ser evitado, assim como perguntar não é educado e expor os sentimentos é fragilidade.

Diante desse paradigma cultural segui minha vida percebendo que grande parte das pessoas que me cercavam também adotavam esse mesmo código de conduta.

Foi impregnada com esse modelo, que também me conectei com meu propósito de vida: cuidar das dores das relações incompletas.

Nesse contexto, e usando em um primeiro momento apenas a ferramenta da advocacia, combater ou evitar conflitos me pareciam as melhores estratégias para trazer harmonia.

Pensava ser a ausência de conflito sinônimo de paz.

De alguma forma tentar eliminar conflitos me trouxe algum êxito profissional, mas ao me apropriar dessa estratégia além de me desconectar com meu chamado de alma, meus clientes apenas experimentavam um alívio superficial. Não era uma experiência transformadora ou regenerativa, mas sim, de ruptura.

O litígio traz a ilusória sensação de proatividade diante do que parece insolúvel. Assim como a convocação da figura de um árbitro ou juiz para a solução, traz um conforto paternal diante de algo tão desafiador como um conflito.

Reduzir o conflito em uma questão de ter ou não razão, simplesmente esvazia a possibilidade de cuidar de algo tão essencial e fenomenológico como as relações.

O fato trazido como motivo do embate, pode até ser resolvido pela estratégia impositiva do combate ou da fuga, mas a angústia relacional permanece.

Percebo que sem reparar os laços relacionais não há como sustentar a harmonia social.

Bom, se a utilização do sistema punitivo-adversarial vigente na nossa sociedade não acolhe com completude a dinâmica conflituosa, o que fazer?

Intuo que o primeiro passo é refletir sobre a conotação negativa que damos a palavra conflito.

Parte da construção cultural de afastar o conflito vem do emaranhado do seu conceito com o da palavra confronto, que por sua vez nos remete a briga, agressividade, violência … e isso por si só nos impulsiona para o afastamento.

O confronto, assim como a fuga ou a negação do conflito, são estratégias para lidar com ele, mas não o definem.

Essas estratégias geram afastamento e ruptura, porque não se pautam no reconhecimento do que estamos sentindo, não permitindo a interação com o outro que está envolvido na questão. São reações que não nos conectam com o que realmente está causando o desconforto interno, mas que nos fazem trazer cólera ou fuga para o mundo externo.

Essa constatação é experiencial, pois quando adotamos uma ou outra postura podemos perceber que o conflito definitivamente não se desfaz, continua dentro de nós …, e isso, porque agindo na reação, não temos a oportunidade de dar voz e vez ao real motivo do desconforto.

De onde vem esse incômodo?

Sinto que vem da diversidade, que, como disse Edgar Morin, é o tesouro da vida (Diálogo sobre a natureza humana, 2000, p.41).

A diversidade que é valor na união, é dano no conflito.

A existência de algo diferente de mim me gera estranheza. Esse desconforto, vem da minha dificuldade de compreensão daquilo que é diferente do que eu já experienciei. Simplesmente porque as minhas perspectivas e vivências me permitem acessar apenas uma determinada gama de possibilidades.

Cada um de nós tem um recorte próprio de vida, que nos faz agir e reagir de acordo com ele.

Feita essa segunda constatação, é preciso ir mais a fundo, e observar que quando o conflito se instaura, utilizamos nossos prismas de vida e crenças estabelecidas de acordo com eles, para, na verdade, proteger algo precioso que nos constitui como seres humanos, nossas necessidades (valores/princípios).

Elas são muitas, de várias ordens e compartilhadas por todos nós, humanos, em qualquer lugar mundo (e se você sentir que não me conte):

Autonomia, celebração, comunhão espiritual, beleza, harmonia, paz, diversão, alegria, lazer, integridade, amor-próprio, autenticidade, criatividade, Interdependência, aceitação, confiança, empatia, honestidade, respeito, segurança emocional, abrigo, alimento, toque, expressão sexual, descanso …

Então, o fogo, que está por traz da fumaça do conflito, é uma necessidade que preciso cuidar e, que por determinada circunstância, sinto estar ameaçada por outra pessoa, que se utiliza de estratégia diferente da minha para cuidar das suas próprias necessidades.

Visto assim, o conflito pode ser vivenciado como um instrumento a serviço da relação, uma vez que surge a partir dela, e se cuidado pode promover intimidade entre os envolvidos.

O conflito clama por ser ouvido para ser sentido para mudar para transformar.

E mais, o conflito é elemento fundamental do processo democrático, porque uma democracia supõe e requer pontos de vista diferentes em conflitualidade (Edgar Morin em Diálogos sobre a Natureza Humana, 2000, p76).

Portanto, eliminar o conflito não é uma possibilidade harmônica, já que eles são inerentes as relações, essenciais para a manutenção da democracia e acolhimento da diversidade da vida.

Pergunto: o que poderia coexistir com as atuais estruturas institucionais de solução de conflito de forma a criar uma nova narrativa para esta questão existencial que traga pacificação social e cuide dos danos, restaurando e reintegrando àquela relação conflituosa?

O remédio é singelo e sem contraindicações: Diálogo.

O Diálogo como ferramenta, que permita aos envolvidos se conectarem através de suas humanidades, expressas por meio daquelas necessidades que falei há pouco, e que são comuns a todos nós.

Um processo de comunicação baseado no sentir. Algo que demanda de nós presença, comprometimento, verdade e receptividade.

Um espaço onde possamos nos render à escuta, para reconhecer nossas humanidades através do outro e a partir daí gerar empatia e compaixão, cocriando uma relação autêntica e colaborativa, para que então, possamos sair do paradigma belicoso e superficial que nos encontramos.

Hoje reconheço que é na conversa que reside uma possibilidade de aprimorarmos nossos parâmetros de convivência, sustentando elos reais.

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