Metamorfoses para uma contínua descolonização do inconsciente
Por Anna Denardin e Maria Clara Parente
“Trabalhar no âmbito da história tem duas dimensões: a primeira é romper com o velho, dizendo que o que você pensou que era real é apenas uma ilusão. A segunda é oferecer algo novo, dizendo que o possível e o real são muito mais grandiosos do que você pensava.” Charles Eisenstein
O poder de uma sociedade complexa surge de uma história. De um sistema de acordos e narrativas que servem de andaimes para o mundo. Experimentamos a vida como uma sucessão de momentos que produzem um passado, presente e futuro e da mesma forma, as narrativas são tipicamente estruturadas de uma maneira que espelha nossa experiência. Elas enquadram nosso senso de identidade e, até certo ponto, fornecem uma espécie de modelo de como devemos nos comportar, o que devemos valorizar e quem devemos aspirar a ser. Hannah Arendt já dizia:
Talvez eu possa responder à pergunta ‘O que sou eu?’ sem uma história, mas acho que não poderia fazê-lo com a pergunta mais significativa: ‘Quem sou eu?’
Uma narrativa é construída a partir do imaginário social, que propicia a criação de valores, instituições, leis e símbolos por meio dos quais as pessoas compreendem seu papel social. O imaginário é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura, é nele que as sociedades esboçam suas identidades e objetivos e organizam seu passado, presente e futuro. Ele se expressa por ideologias, utopias, símbolos, rituais e mitos, que criam visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em movimentos contínuos de preservação da ordem vigente ou de introdução de mudanças. Histórias desse tipo também atuam como um filtro da realidade: nós nunca apenas percebemos o mundo, nós o interpretamos. E o trabalho de interpretação depende em grande parte das histórias que internalizamos sobre o mundo.
A narrativa dominante atual nos coloca em separação e competição constante. Nos separa da natureza em detrimento de uma produtividade que leva ao máximo lucro [a custa de que(m)?]. As cartografias socioculturais que moldam nosso imaginário e interferem na nossa percepção da realidade se encontram em um período de transição entre histórias, em que o velho e o novo coexistem. Se os paradigmas que sustentam a modernidade são a materialização de arranjos de forças distintos do atual (pois resultam de outros corpos e outras conexões entre eles que firmaram nossa história), concomitantemente eles impedem a expressão dos novos mundos gerados pelo novo arranjo de forças e conexões no presente, de um novo mundo que quer nascer.
Essa experiência caracteriza novos “embriões” de mundo que habitam nossos corpos, e em um estado concomitantemente estranho e familiar, somos invadidos por novas maneiras de ver e sentir. Experimentamos uma sensação que não pode ser descrita por palavras, nem imagens, nem gestos, mas é real. Esse mal estar é um alarme vital de que a vida pede por um movimento de transformação: abrir espaço para que um novo mundo possa germinar.
A mudança para uma narrativa do encontro, da colaboração, da abertura para o não-humano é essencial para que possamos escrever uma história de futuro (pessoal e coletiva) regenerativa. Em última instância, é a história e não a força que define aqueles que estão no poder. Por isso devemos mudar a narrativa hegemônica para mudar de fato o sistema.
“A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.” Ailton Krenak
metamorfoses-palavras:
descolonizar como prática de palavra ação
palavra como movimento para gestos
fabulações especulativas, ficções especulativas, ficções feministas
imaginários água, ima — i’m a água
imaginário com solo — imagi — árido
imaginário mutante — gi — girino
imaginário com graça — rio com o final do nário
imaginário de outra ordem — orianigami, quase origami, disforme que forma
imaginários que mudam de forma
formas que mudam de formato — — — — — formatos em mutação
alquimia de gestos
Des planificação do inconsciente
Navegar pelas diferenças que nos habitam
Abraçar o desconhecível, o incontrolável, o inesperado
Descolonização do inconsciente que machuca nossa capacidade imaginativa.
liberação
metamorfoses — gestos
*Baseadas no livro Esferas da Insurreição de Suely Rolnik reinterpretadas por Anna Denardin
1.Desanestesiar a vulnerabilidade e a potência da subjetividade que reside escondida nas sombras, nas fragilidades e nas imperfeições
2.Ativar e expandir o saber-do-corpo: sentir a experiência do mundo em sua condição de vivo e interconectado
3.Desobstruir o acesso à tensa experiência do que é estranho, permitindo-se a contínua experiência de reformular o modo de perceber a realidade
4.Não negar a fragilidade resultante da desterritorialização do ego que o contato com o estranho promove inevitavelmente. Remover os bloqueios à difícil experiência de fazer o que é estranho parecer familiar e fazer o que é familiar parecer estranho.
5.Não interpretar a fragilidade e seu desconforto como ‘coisa ruim’, nem projetar sobre eles leituras fantasmáticas (ejaculações precoces do ego, provocadas por seu medo de desamparo, repúdio, rejeição, exclusão social e humilhação)
6. Não ceder à vontade de conservação das formas conhecidas e à pressão que esta exerce contra a vontade de potência da vida em seu impulso de produção de diferença. Sustentar-se no fio tênue deste estado instável até que a capacidade imaginativa construa um lugar de corpo-e-fala que seja capaz de atualizar a visão de mundo que se anuncia, permitindo assim que as formas agonizantes acabam de morrer.
7. Não atropelar o tempo próprio da imaginação criadora para evitar o risco de interromper a germinação de um mundo e, com isso, tornar a imaginação vulnerável a deixar-se desviar. É nesse desvio que ela é capturada e tem de submeter seu Imaginário à uma capacidade criativa que se dissocia da vida para se converter ao consumo.
8. Não abrir mão da potência criadora, o que implica em mantê-la vicejante, fluindo em seu processo ilimitado de ressignificar e re-imaginar o futuro.
9. Não negociar o inegociável: tudo aquilo que impediria a afirmação da vida, em sua essência de potência de criação. Aprender a distingui-lo do negociável: tudo aquilo que poderia ser reajustado porque não machuca a capacidade de imaginação e transmutação.
10. Re-imaginar o mundo em cada gesto, palavra, relação com o outro (humano ou não-humano), modo de existir — toda vez que a vida assim o exigir.
Anna Denardin é mestranda em sustentabilidade na arquitetura e urbanismo, investiga como costurar temas como regeneração, biomimética e pensamento sistêmico. Também é ilustradora e co-fundadora do Futuro Possível.
Maria Clara Parente é jornalista, atriz, documentarista e co-fundadora do Futuro Possível e do This is not the Truth(@thisisnotthetruth). É co-editora da Revista Possível e colaboradora do Projeto Colabora e da Emerge.