Morte em um mundo mais que humano

Futuro Possível
Revista Possível
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8 min readAug 18, 2020

Um paralelo entre Cultura do cancelamento e colaboração multi-espécie Por Maria Clara Parente — co-fundadora do Futuro Possível e do This is not the Truth(@thisisnotthetruth). É co-editora da Revista Possível e colaboradora do Projeto Colabora e da Emerge.

image: Saatchi Art Artist VIEILLE Gregoire

Ser parte de um organismo que está doente sem saber ao certo se vai haver uma recuperação — ao menos dessa “nossa” parte do corpo coletivo — é uma percepção importante para lidar com esse que pode (ou não — espero!) ser o ato final de nossa espécie. Nesse distópico ano de 2020, a morte insurgiu por quase todas as rachaduras da casa da modernidade, mas o problema é que depois de um período de choque inicial, olhando para os espelhos da casa, a figura humana refletida é tudo menos o que aprendemos a pensar como humano. A civilização, que passa longe da ideia de civilidade, se transfigurou em cenário para atuação desse ser que compactua direta ou indiretamente com violências sistêmicas. Humano segundo o dicionário, seria “Bondoso, compreensivo”, mas a narrativa macro parece não dar muitos sinais desse tipo de humanidade. As ferramentas tecnológicas que prometiam um mundo conectado sem fronteiras viraram arena para a guerra cultural das tribos miméticas, que se engajam em “debates” que são na verdade disputas ideológicas. A mãe terra parece ter ficado mais uma vez de lado, nessa história dos filhos desgarrados que seguem se esquecendo de onde vem e para onde sempre voltam. Aos cuidados úmidos e profundos da mãe. O solo.

Nesse texto, vou fazer um paralelo entre a morte subjetiva de individualidades expressada pela cultura do cancelamento e a morte como processo conectado com o ciclo da vida em um sistema de interdependência multi-espécie — essa tendo como base a percepção de humano vindo de húmus, proposta por Donna Haraway no livro “Ficar com o problema”(Staying with the trouble).

Humano, de húmus, daquele volta para a terra porque dela faz parte e durante sua vida, através da linguagem, elabora e ritualiza das mais diversas formas sobre fazer parte desse sistema vivo que, mesmo que pareça grande, é uma pequena parte de um infinitamente vasto universo, a respeito do qual conhecemos tão pouco.

Como entender a morte de outros jeitos pode nos fazer olhar para vida de outras formas? Pensar o que significa ser humano no pós-Antropoceno, um tempo onde os humanos não se reconhecem como o topo da pirâmide da vida na Terra, mas como parte da teia relacional, é parte importante desse processo. Muitas vezes as transformações sociais acontecem em níveis culturais e ideológicos mas em situações como a atual, onde o colapso se faz presente em tantas camadas, acredito as mudanças precisam se dar nesse espaço onde os seres sociais(nós) criam suas realidades: nos imaginários sociais. Mais do que pensar nesse ou naquele líder, nessa ou naquela solução, precisamos de mudanças radicais nos paradigmas e, principalmente, mudança dos sujeitos que pensam esses paradigmas e narrativas. Formas de existir que repensem o sentido de ser humano, que deixa de ser entendido como um mero objeto de uma sociedade produtivista, precisam urgentemente deixar de ser consideradas periféricas ou alternativas.

Os imaginários sociais da modernidade definem o seu “território” na tríplice estados-nação, economia e razão e estabelecem o “valor humano” a partir da produtividade individual que fortalece a economia do seu país. É fácil enxergar aí as raízes das formas como nos organizamos até hoje. Esse imaginário, apesar de ter surgido no Iluminismo ainda é aquele que prevalece e molda a maior parte de nossas relações sociais, que acontecem cada vez mais no território digital.

Subproduto da pós-modernidade, onde os pós-humanos são acostumados a diariamente “cancelar” e terceirizar outras vidas humanas e não-humanas, engendramos coletivamente esse onipresente ser digital, a chamada Cultura do cancelamento.

A cultura do cancelamento é também um produto da objetificação do ser humano, que diariamente joga “lixos” em lugares distantes como se pudesse cancelar o que faz. O cancelamento é filho dessa cultura que não composta, só tira de perto do campo de visão. Sem conexão com culturas ancestrais, sem divindades ou ideologias, nos curvamos para um deus expressão da nossa dificuldade de “Ficar com o problema”, fazer escolhas e de encarar as raízes patriarcais, racistas e elitistas que ainda dominam as organizações sociais. Não me refiro aqui às pessoas sérias, comprometidas com as mudanças sociais para um mundo menos retrógrado que de fato apontam e sinalizam injustiças e violências pontuais e sistêmicas de forma embasada usando as possibilidades de disseminação do mundo digital. Esse é um trabalho muito importante, que precisa ser feito, e é parte do processo de transformação dos imaginários.

Entretanto, na arena da internet, as palavras são protegidas pelo anonimato e a lei é feita pela guilhotina pública — e a história faz questão de nos lembrar que o julgamento público nem sempre é cheio de boas intenções, como nos aponta a youtuber transgênero Natalie Wynn, nesse vídeo de seu canal ContraPoints. Pode-se dizer que na rua cibernética, a individualidade que cancela policia, julga e executa a pena de morte. O cancelamento digital não leva em consideração o que você fez ou que você pode errar. O cancelamento lida com a negação de seres individuais, porque é também filho do neoliberalismo e da meritocracia. Não leva em consideração que ninguém é sem o outro e pensamentos pensam junto, em comunidade. A escritora boliviana Julieta Paredes, feminista decolonial e militante da luta antipatriarcal na América Latina, também dá uma importante contribuição sobre outro sentido de humanidade dentro da coletividade, nesse caso embasada na proposta de feminismo comunitário:

“(…)queremos dizer que humanidade é isso, possui duas partes(pessoas) diferentes que constroem identidades autônomas, que assim constituem e constroem uma identidade comum. A negação de uma das partes, na submissão e subordinação, é atentar também contra a existência da outra. Submeter a mulher à identidade do homem, ou vice-versa, é cortar metade do potencial da comunidade, sociedade e humanidade. Ao se submeter a mulher, se submete a comunidade, porque a mulher é a metade da comunidade, e ao submeter uma parte da comunidade, os homens se submetem a si mesmos, porque eles também são a comunidade.Julieta Paredes — Uma ruptura epistemológica com o Feminismo Ocidental, 2010(Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais/Org. Heloísa Buarque de Holanda, 2020)

Recentemente, Peter Limberg e Lubomir Arsov escreveram um artigo sobre o “deus do cancelamento”, que em última instância quer cancelar a própria humanidade, o que faz sentido quando pensamos no espelho dos horrores que nos deparamos ao olhar para as opressões ainda perpetuadas das mais diversas formas entre grupos humanos e também não humanos. Um grande auto flagelo por tantas imbecilidades feitas por esse grupo que chamamos de “humanidade” nesse tempo chamado de Antropoceno. Mas como dar o passo além do cancelamento para pensar humanos como parte de teia interdependente de coletividades?

Para imaginar futuros desejáveis precisamos ter responsabilidade o suficiente para encarar esse “deus do cancelamento”, que vem ganhando devotos tanto por raiva do sistema quanto por medo. Cancelar pessoas que tem comportamentos racistas, xenófobos e patriarcais pode não ser a melhor opção para criar sociedades que sejam capazes de se co-responsabilizar e criar gestos coletivos nesse presente tão extenso em problemáticas.

Lendo o livro da bióloga e pensadora feminista Donna Haraway, “Ficar com o Problema”(ainda sem tradução para o português) acredito que o seu subtítulo poderia ser a antítese da cultura do cancelamento — gerar parentesco no “Chtuluceno”. Haraway, com sua precisão e ironia rara, nos convida a pensar nosso tempo como um “Chtuluceno” que vem da junção do Latim tentaculum, que significa tentar e sentir e Cthulhu, que vem da aranha Pimoa Ctchulhu, que vive nas florestas de Sonama e Mendoncino na Califórnia. Haraway faz questão de lembrar: “Ninguém vive em todo lugar. Todo mundo vive em algum lugar.” . Esse seria um tempo de seres da terra, de “monstruosidades” para as quais precisamos nos esforçar para criar parentesco(“make kin”)para além da família nuclear.

“A Terra do nosso Chuthuluceno é simpoética, não autopoética. Mundos mortais (Terra, Gaia, Chthulu, e todos os muitos nomes e poderes que não são gregos, latinos ou indo-europeus) não se auto fazem, não importando o quanto são sistemas complexos e multicamadas (…) Sistemas autopoiéticos são muito interessantes — como exemplo temos a história da cibernética e das ciências informacionais, mas eles não são bons modelos para mundos do viver e morrer e suas criaturas.(…) é simpoética, sempre criando parcerias profundas, sem começos e subsequentemente, sem interações unitárias. (…) aranhas são as melhores para representar simpoiese do que qualquer outro vertebrado.”
Donna Haraway, Ficar com o Problema — em tradução livre

Para contar outras histórias, precisamos nos responsabilizar de uma forma diferente com as palavras e com os seres que nos relacionamos para costurar junto essas narrativas. “Escolher essa história, não aquela história.” diz Haraway. Cada passo importa, e se eles forem dados em profundidade, entrando cada vez mais para dentro da terra, podemos nos responsabilizar pelas suas reverberações no mundo.

Quando começamos a partilhar desse tempo de multiplicidade de telas, de alguma forma inaugurado em larga escala com a pandemia, podemos perceber que as palavras são a materialização do passado, presente e futuro porque a própria palavra em si é esse exercício de fabulação de mundos. Haraway nos diz

“Importa pensar sobre o que pensamos para pensar; importa quais histórias contamos para contar outras histórias; importa quais nós fazem o nó, que pensamentos pensam pensamentos, que descrições descrevem descrições, que laços amarram laços. Importa que histórias fazem mundos e que mundos fazem histórias.”
Donna Haraway, Ficar com o Problema

As tecnologias emergem de nossas imaginações mas no momento atual ainda são um produto de um tipo de pensamento específico, filho tirânico do Capitaloceno,(tempo descrito por Haraway como possibilidade para descrever nosso tempo para além do conceito de Antropoceno) que já desmantelou os sistemas de poder políticos e jornalísticos criando a possibilidade de verdade a todo instante em trending topics, revivendo crucificações públicas para culpados e inocentes, criando insurreições e mostrando as fragilidades das democracias. Os robôs dos filmes do passado nos prometiam um mundo onde a tecnologia salvaria a humanidade da humanidade, fazendo a justiça e abolindo os problemas do mundo. De certa forma essa previsão se consolidou, porém, ninguém está a salvo do exército dessas máquinas e seus avatares. Como então fazer para recuperar a humanidade? Afinal, o que é essa ideia de humanidade? Para o filósofo nigeriano iorubá Bayo Akomolafe, há uma fixação com as soluções rápidas, que nos impedem de perceber “humanidade” como um emaranhado de relacionamentos humanos e não-humanos.

“Gostaríamos de pensar, por exemplo, que as mudanças climáticas e a devastação ecológica estão ‘fora’ de nós — algo que podemos resolver através da sofisticação tecnológica ou da eficiência administrativa. Gostaríamos de pensar que é nosso direito mobilizar a natureza para atender aos nossos imperativos racionais. E quando as coisas não dão certo, jogamos mais dinheiro, mais metodologias e mais homens no problema — esperando que isso desapareça. Mas não, porque ‘nós’ somos a crise — ‘nós’, o emaranhado do ‘humano’ e ‘não humano’, somos o problema que se toca perversamente. A crise não é uma interrupção da nossa humanidade, ou algo errado em que podemos lançar soluções. É o todo se repensando.”

Bayo Akomolafe, These Wilds Beyond our Fences (em tradução livre)

Humano, de húmus — como então voltar para terra, para fundo da terra, para as “Comunidades Compostistas” (propostas por Haraway no último capítulo do livro Ficar com o Problema (Capítulo 8- Camille Stories: Children of Compost, fruto de um processo de imaginação coletiva) e para dentro dos pequenos seres que se encontram dentro e fora de nós, para as pequenas criaturas do mundo e para as histórias que contamos sobre esse mundo. Olhar para lugares impensados, se entender como seres inter-geracionais numa grande teia relacional, criar outras danças com observação meticulosa de outros seres que também estão em extinção e são companheiros nesse sistema de interdependência multi-espécie me parece ser um dos caminhos para continuar vivendo, morrendo e sonhando nessa Terra.

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Movimento que investiga futuros possíveis a partir da lente da regeneração.