Pertencimento em meio a pandemia

Futuro Possível
Revista Possível
Published in
9 min readAug 18, 2020

Reflexões a partir do sentimento de não pertencimento e necessidade de reconexão humana com a comunidade

Por Júlia Oliveira, Priscilla Medeiros Rodrigues, Talissa Monteiro e Thais Pacheco

Revisão por Giórgia Gschwendtner

Esse texto é uma produção da comunidade do Futuro Possível a partir das falas do evento World Localization Day, criado pela Helena Norberg-Hodge, que aconteceu em junho de 2020. O evento foi criado pelo Local Futures, organização criada pela Helena e contou com a participação de ativistas como Joanna Macy, Satish Kumar e Vandana Shiva.

imagem: beelden van staal

“Pequenos grupos de pessoas, em espaços pequenos, com pequenas ações podem mudar o mundo.” Eduardo Galeano, jornalista uruguaio.

Está claro que não teremos um “retorno ao normal”. Então, o que virá na sequência? Uma nova história humana baseada em princípios de conexão e diversidade está emergindo. A partir do Dia Mundial da Localização, que ocorreu no último dia 21 de Junho de 2020 (http://worldlocalizationday.org/), construímos juntos com agentes da regeneração espalhados pelo mundo, um olhar para o momento que estamos vivendo de esperança de mudança planetária em escala humanitária.

Na análise de Rupert Read (Reino Unido), fundador do movimento Extinction Rebellion, a perspectiva atual é uma oportunidade que deve ser aproveitada. “Me parece que o coronavírus nos deu uma última chance. O momento de pausa que temos é único, uma oportunidade que definitivamente não podemos perder. Devemos usar deste momento para nos preparar para uma redefinição. Se não o fizermos, estaremos desperdiçando o que acredito ser praticamente nossa última chance. E a razão fundamental pela qual temos de fato uma chance agora que não tínhamos antes, é que a pandemia está nos apresentando a experiência de uma vulnerabilidade compartilhada. Ao redor de todo o mundo temos esta experiência da vulnerabilidade, compreensão e mortalidade compartilhadas, se não entre nós mesmos, ao menos para nossos pais e avós. Uma emergência compartilhada.”, diz.

Está claro que precisamos repensar qual tipo de presença humana queremos ser na Terra. Esse é o momento que o planeta nos desafia a deixarmos nossos hábitos de desconexão, degradação e violências, que favorecem um grupo pequeno de privilégios. A proposta é olhar de forma sistêmica, incluindo todos em suas diversidades a somar a uma comunidade de saber globais e trocas locais.

E como observa Charles Eisenstein (EUA), filósofo e autor, o cenário atual impulsiona a reflexão a partir do local em que estamos. “Todos sabem que estamos vivendo tempos incomuns e que isto nos abre portas para repensar o todo. Penso que, se avançaremos como sociedade em direção à Localização, não será porque o Covid-19 nos força a fazê-lo, mas principalmente porque está nos mostrando para onde estávamos nos dirigindo e assim nos questionarmos: “Nós realmente queremos nos manter nesta direção?”

Qual é a direção que queremos dar ao nosso futuro? Que condições de vida queremos deixar e criar para as próximas gerações de vida que habitam esse planeta? Com mais de 4,6 bilhões de ano de evolução a Terra e seus seres colaboraram para a existência de um ambiente propício de propagação da vida. Em menos de 100 mil anos a espécie humana já trouxe efeitos tão profundos nos sistemas regenerativos do planeta, que estamos vivendo um aquecimento em nível global em dimensões nunca vistas antes.

Como bem destacou Andrew Simms, da New Economic Foundation (Reino Unido), há recursos que dão suporte a este sistema degradativo. “Existem bilhões e bilhões de dólares sendo investidos nos negócios como de praxe, “business as usual”, seja subsidiando combustíveis fósseis, subsidiando enormes monoculturas, ou criando condições de manutenção da prosperidade e bem-estar corporativo a algumas das maiores e mais poderosas corporações do mundo.”

Enquanto estes bilhões são investidos na destruição da natureza (os seres que sustentam nossas vidas), ao mesmo tempo temos uma maioria da população global alienada às consequências do impacto de suas escolhas nos ecossistemas em que vivemos. Sentimos uma enorme desconexão com o planeta e nos sentimos sem pertencimento a local ou comunidade nenhuma. Ao mesmo tempo em que construímos cidades gigantes, nossas comunidades morrem e nos sentidos pequenos no mundo. Perdemos nossa conexão com nossos corpos e com a natureza.

O depoimento da Eve Ensier, dramaturga norte-americana, reporta um exemplo deste sentimento. “Eu fui para as cidades onde tudo foi rápido, geral e grande … E era tudo sobre alcançar e obter e equivaler a algo e provar que eu não era… E, eventualmente, fiquei muito, muito doente e soube no final de que eu nunca mais poderia viver na cidade.

Eu mudei para as árvores, mudei para o interior. Eu me encontrei no meu corpo. E eu tive que estar conectada à terra porque quando você está no seu corpo, você precisa estar conectada à terra. E acho que o que o capitalismo, racismo, o patriarcado faz intencionalmente é remover mulheres, e homens de seus corpos. E, uma vez que você é removido do seu corpo, eles podem fazer o que quiserem porque você deixa a sua natureza. E quando você é removido da natureza, você é removido da fonte, e você é removido da Mãe, e você é removido desde o princípio, e você é removido do seu coração, e você é removido de tudo o que irá guiá-lo ou ensiná-lo ou instruí-lo ou levantá-lo. Você é removido do divino”, compartilha a escritora.

Este é um reflexo da globalização que deixou tudo tão distante e sem história afetiva fazendo nos perdemos no mundo.

Segundo avalia Russel Brand (Reino Unido), comediante e autor, esta experiência de lidar com o local representa uma força potencial. “Quando lidamos com economias e comunidades de maneira local em contraste com o global, temos a oportunidade de exercer real poder sobre o modo como nossas vidas são guiadas. Estamos falando sobre, ao menos do meu ponto de vista, (Não sou nenhuma Helena Norberg-Hodge, então não sou um especialista mas) a maneira como entendo é, se a comunidade pode ser autossuficiente, totalmente autônoma, cuidando de suas próprias necessidades como prioridade, em acordos com outras comunidades, em aliança e apoio, e com respeito quando se trata de alimentos, a maneira como organizamos o poder, como organizamos a saúde e até, questões mais complexas como justiça, nós temos que localizar onde for possível.”

E a pandemia mostrou que o modelo daqueles que detém o poder na nossa sociedade (financeiro ou político) não possuem resiliência suficiente para lidar com crises em todos os aspectos, como explica a eco-filósofa, Joanna Macy. “Que momento maravilhoso para ter uma conferência sobre localização, porque estamos em uma pandemia que está demonstrando para qualquer tolo ver que grande organizações em todo o país não têm capacidade de responder. Não há inteligência e aterramento, que é o que desejamos com a localização. O mundo que está doendo para nascer agora é um mundo onde as pessoas se encarregam de suas vidas, dando os braços umas às outras e trabalhando juntos por algo que todos gostariam de ver acontecendo”. Ou seja, a localização descentraliza as decisões e empodera os indivíduos na direção para um mundo mais regenerativo: “Quem pensa que um mundo novo nascerá de cima para baixo está enganado. A vida cresce de baixo para cima e a localização é onde o novo mundo será criado”, concorda a física quântica e ativista Vandana Shiva.

Além disso, uma crise global como a que estamos vivendo aprofunda a desigualdade e tende a ter muito mais impacto na vida daqueles que já estão em vulnerabilidade. Durante o evento foi citado o movimento norte-americano Soul Fire Farm que tem o objetivo de desmantelar estruturas sociais racistas e injustas por meio da produção de alimento. Isso porque, o cenário atual mostra que uma em cada 10 famílias negras e latinas passa fome nos EUA, o que é três vezes mais do que ocorre com famílias brancas. Há cinco vezes mais chances de mortes ocorreram devido a uma dieta ruim, do que de violência. Isto não é acidente. Atualmente, o sistema alimentar está no controle de um pequeno número de grandes corporações que visam o lucro privado, não ao bem público.

Mesmo não estando no mesmo barco, mas estamos todos conectados, como diz o psiquiatra e pesquisador literário Iain McGilchrist. “Nós não estamos separados do cosmos e não estamos separados da natureza”. Um pensamento sistêmico reconhece que as crises que vivemos são respostas às escolhas que fazemos, individual e coletivamente e vice-versa, pois o que nos acontece também pode moldar a nossa forma de pensar daqui para frente. O coronavírus pode ser um chamado coletivo para repensarmos as caminhadas pessoais e as narrativas coletivas que estamos construindo.

“Na verdade, estamos vivendo em um período muito interessante. os problemas que enfrentamos são piores do que nunca, mas a base para trabalhar neles é melhor do que nunca. Olhando pelas janelas, vemos os protestos mais extraordinários que já existiram e, além disso, enorme apoio popular. O apoio popular aos manifestantes hoje é muito mais alto do que era para Martin Luther King no auge de sua popularidade. Mas o fato é que temos também uma confluência dos piores problemas que os humanos já enfrentaram, como a questão de saber se a sociedade pode sobreviver por mais uma geração ou duas. É uma pergunta muito viva agora. Temos problemas como isso e também temos mais energia, comprometimento e capacidade de lidar com eles do que nunca”, explica o filósofo Noam Chomsky

É preciso olhar para os lados e nos reconectarmos com nossa comunidade, como destaca Mika Tsutsaumi, jornalista e autora japonesa. “Pessoas dentro de movimentos populares estão revivendo a diversidade. Podemos recuperar a humanidade usando a imaginação. Cuidar dos outros. E abraçar a diversidade, pois todos fazemos parte de uma grande natureza. Então, vamos acreditar que a nossa escolha a cada momento mude o futuro”, avalia.

No livro “O Mundo Mais Bonito que Nossos Corações Sabem Ser Possível”, Charles Eisenstein, explicita o que, lá no fundo, nossos corações já sabem: “Não se pode mudar uma coisa sem mudar tudo.”. E como ele também traz à luz nesta obra “Talvez mudanças profundas só aconteçam por meio de um colapso”. Qual melhor momento do que agora?

Nossos desejos mais profundos e o que realmente importa convergem em um ponto crucial: mais tempo com nossa família e amigos, uma vida digna e abundante para todos, teto, alimento, ar e água limpos, em equilíbrio e respeito com o planeta. Diante da fragilidade e ineficiência do sistema econômico atual, escancaradas pela pandemia do Covid-19, felizmente a conscientização sobre a necessidade de buscarmos alternativas têm aumentado.

Do sentimento de não pertencimento vem a constatação de nossa necessidade vital de viver em comunidade e com propósito. A Localização é um dos caminhos que pode nos conduzir a uma nova, mais bonita e equilibrada realidade, com uma condição de vida humana e não-humana na Terra. “Uma economia baseada em necessidades, ou localização, de acordo com as leis da Natureza, é o único remédio para os problemas que enfrentamos.” observa Venerável Samdhong Rinpoche, ex-primeiro ministro, governo tibetano no exílio.

Concluímos a reflexão desta temática pautada pelo evento com as palavras de Helena Norberg-Hodge, fundadora e diretora do Local Futures, pioneira do movimento pela economia local. Helena é referência no que diz respeito às suas pesquisas sobre o impacto da economia global e desenvolvimento internacional em comunidades locais e, consequentemente, suas economias e identidades. Há mais de 30 anos, se dedica à expansão e conscientização de uma economia de bem-estar pessoal, social e ecológica, a Localização, como forma de combater estes impactos de potencial devastador em culturas locais que ainda resistem.

“A Localização não se trata de extinguir o comércio internacional, mas de reduzir as distâncias entre produção e consumo sempre que possível. Trata-se de aproximar a economia de casa, para que possamos enxergar com maior clareza os impactos de nossas ações. É um conceito simples com vantagens e benefícios de grande alcance. Pode auxiliar a restaurar meios de subsistência mais significativos e sólidos ao mesmo tempo reduzindo bastante nosso impacto na biosfera. Restaura também nossas conexões fundamentais entre os seres e a terra. É verdadeiramente uma solução benéfica para o todo.”

Falas traduzidas do evento World Localization Day, em parceria com Local Futures.

Priscilla Medeiros Rodrigues — Artesã e bordadeira, estudante de design de culturas regenerativas, tem formação em arquitetura com especialização em desenvolvimento sustentável. Acredita que todos devem ser artistas de suas vidas e está em busca de uma vida mais simples.
Júlia Oliveira —
Brilho nos olhos e coração pulsante quando se trata da Natureza, produtora audiovisual de formação e apaixonada por documentário. Em um processo profundo e constante de transformação interna e externa, estou na busca por me tornar uma agente da regeneração por onde quer que vá.

Thais Pacheco — Formada em Ciências Holísticas na Schumacher College (UK) e está em busca de aprofundar a sua relação com a essência da vida.

Revisão de Giórgia Gschwendtner — Nascida e criada em Santa Catarina, após algumas voltas pelo mundo me formei jornalista, e neste caminhar busco formas de comunicar com maior sutileza. Dessa tal comunicação, hoje empreendo com a GiG.Content na intenção de ajudar as pessoas a transmitirem o seu potencial e construir um mundo melhor.

Talissa Monteiro — — Contadora de histórias, jornalista, instrutora de yoga e facilitadora de processos de autoconhecimento inspirados pela ecologia profunda. Filha das montanhas da Mantiqueira, idealizou na região a Casa na Árvore, um espaço de práticas como o yoga e a agrofloresta. Também conduz conversas regenerativas em @pachamente

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Movimento que investiga futuros possíveis a partir da lente da regeneração.